Contos
1º lugar: ANDRÉ LIMA
BARROS, por “A súplica”.
A
SÚPLICA
1995.
Entre
o estrondo e a escuridão total foram apenas dois segundos. Ele ainda estava
naquele estado em que não se sabe direito se aquilo tudo é apenas parte de um
sonho, de um pesadelo, ou se realmente esta acontecendo. A sua consciência começou
a voltar lentamente à medida que as pessoas aglomeradas à sua volta começaram a
falar indistintamente. Ele estava atirado no chão, disso tinha certeza. Do
resto, nada fazia sentido. Os sons eram desuniformes, as palavras, os gritos
não tinham nexo, tudo era desconhecido, estranho e desfocado. Ele fez um grande
esforço para se erguer do solo, mas fora inútil. O desespero então começou a se
apoderar dos seus pensamentos. Ele precisava saber onde estava, o que tinha lhe
acontecido, o que estava acontecendo.
Repentinamente,
sentiu uma dor descomunal. Que dor horrível! De onde vinha? O que estava doendo
tanto? Ele não conseguia identificar. Talvez o estômago. Não, era na cabeça ou
na perna? Também não, era no corpo todo. Tudo doía tremendamente. Foi então que
percebeu que estava contorcido no meio da rua, todo quebrado, imóvel, com
dezenas de pessoas a sua volta. E só então ele lembrou: o ônibus em alta
velocidade... a pressa... o
compromisso... o outro lado da avenida... achou que dava tempo... correu... a
pressa... olhou para o lado... o compromisso... o estrondo... a pressa... a
escuridão.
A
dor começava a ficar insuportável, mas sua voz já conseguia sair. Seus olhos
estavam empapados de sangue, e ele gemia, gritava. As pessoas à sua volta contemplavam
a cena com um pavor explícito. Ele, impotente, limitado, implorava por socorro.
Estava morrendo. Podia sentir o calor e a viscosidade do seu próprio sangue
escorrendo pelas suas costas. As suas pernas dilaceradas e retorcidas sobre o
asfalto molhado de garoa estavam presas ao seu corpo apenas pelas suas carnes
mais externas. A sua cabeça ardia e parecia que iria explodir a qualquer
momento. Seus órgãos internos estavam completamente destruídos, liquefeitos,
desmanchados ... em segundos estaria morto. Ele podia ver isso na expressão angustiante
das pessoas que o rodeavam. Não estavam olhando para um homem ferido no chão,
mas para um corpo quase sem vida, estraçalhado, agonizante, fazendo um esforço
alucinante para respirar pelo menos mais uma única vez.
Sérgio
se agachou ao lado do homem espedaçado, pegou sua mão ensanguentada e disse que
a ambulância já tinha sido chamada e chegaria ao local o mais rapidamente
possível. Os dois sabiam, no entanto, que ele não resistiria. Antes mesmo que
as sirenes pudessem ser ouvidas ao longe, ele já estaria morto, isso era um
fato. Contudo, o jovem advogado continuou segurando a mão do moribundo,
assegurando-lhe de que tudo acabaria bem. Uma senhora falou ao longe para não
tocar no sangue do ferido, poderia ser perigoso. Sérgio não lhe deu a menor atenção,
até porque o homem também estava usando terno e gravata. Não era um mendigo
certamente e não lhe parecia alguém sem instrução, exceto pela barba mal feita.
Provavelmente se tratava de outro advogado, ou um executivo, correndo pelas
ruas movimentadas da cidade, tentando ganhar a vida cada vez mais difícil para
todo mundo. Poderia ser ele atirado ali no chão, pensou. E se fosse ele, iria
querer que alguém lhe nutrisse com esperanças, mesmo que da mais falsa espécie.
O
homem apertou-lhe a mão com força. Era chegada a hora. Iria morrer e estava
sendo bem como ele sempre havia suposto. Seu corpo ficou dormente, seus olhos e
seus braços começaram a pesar, um sono incontrolável tomou conta de seu
discernimento e o ar entrava com dificuldades nos pulmões. Sérgio retribuiu o
apertão, sabendo que quando aquela a pressão fosse aliviada, era sinal de que o
coitado estaria morto. O homem olhou profundamente em seus olhos, encheu os
pulmões com um volume gigantesco de ar, apertou-lhe as juntas dos dedos com mais
força e falou suas últimas palavras nesta terra: “cuide do meu filho”.
2013.
Era
a festa de aniversário de dezoito anos de Paulinho. Sérgio e Marilda não
acreditavam como o tempo tinha passado tão rápido. Tanto coisa tinha
acontecido, mudado. Ele, agora finalmente chefe do departamento jurídico da
fábrica, podia dar ao único e tão esperado filho, uma comemoração sem
precedentes. Marilda, radiante pela recente promoção do marido e também pelo
aniversário do filho, fez todos os preparativos da festa com muito cuidado e extremo
carinho. Tudo do bom e do melhor.
A
cada ano que passava, os motivos para uma comemoração mais adequada só
aumentavam. A carreira de Sérgio cada vez mais promissora e, mais importante do
que todo resto, só os dois sabiam como aquele menino era importante para eles.
Depois da sua chegada, suas vidas foram agraciadas com um sentido
extraordinário. Marilda sempre sonhou com uma família grande, no mínimo três
filhos, e Sérgio também, desde rapaz, nutria uma latente vontade por ser pai. A
demora na gravidez de Marilda fez com que os dois ficassem apreensivos, quase
desesperados. Mas, Paulinho já estava fazendo dezoito anos e isso é que
importava. O tempo voa, a vida continua e só é dura para os que são moles. Esse
era o lema que Sérgio não fazia cerimônia em compartilhar com quem quer que
fosse, onde quer que fosse.
Paulo
era um menino estudioso, companheiro, carinhoso e dava muito menos trabalho do
que a maioria dos seus amigos e colegas, os quais foram em peso à sua festa. Já
estava no segundo ano de Engenharia Mecânica e o namoro com Fernanda parecia
estar se afirmando cada vez mais e indo às mil maravilhas. Não faltavam motivos
para comemoração. E a comilança fazia jus à ocasião - era farta. Salgadinhos,
docinhos, refrigerante, bolo de três camadas, tudo que um bom aniversário deve
ter e oferecer aos seus convidados. Além da música alta, brincadeiras,
animadores, garçons, um luxo total.
1995.
A
ambulância chegou. Os paramédicos agiram o mais rápido que puderam, mas o homem
já estava morto. Sérgio acompanhou o defunto até o hospital. Aquelas últimas
palavras tinham penetrado na sua alma: “cuide do meu filho”. O som de cada um dos
quatro vocábulos ficava retumbando na sua cabeça. Ele não podia simplesmente
continuar a vida e fingir que aquilo não havia acontecido. Ele precisava saber
quem era aquele homem e de que filho ele estava falando. Não foi nada difícil
descobrir.
Luis
Ferreira Martins. Trinta e quatro anos, auxiliar de serviços gerais do Colégio
São José Operário, viúvo, alcoólatra, ex-presidiário por porte ilegal de arma
de fogo e tráfico de drogas e pai biológico de Paulo da Silva Martins, de sete
meses, o qual estava sob custódia do Estado no Orfanato Casa dos Meninos desde
a morte da mãe. Sérgio também descobriu que Luiz, quando foi atropelado, estava
indo a uma audiência no Foro da cidade, para saber do juiz se poderia ou não
ficar com a guarda de seu filho.
Ele
não resistiu e foi conhecer a criança no orfanato. Foi amor à primeira vista.
Desde o casamento, Marilda tentava engravidar, mas nada. Ele tinha certeza que
o problema era com ela, mas nunca exigiu que a esposa fizesse qualquer tipo de
exame. Ela poderia se ofender e ele a amava demais para causar-lhe tal
desagrado. Adotar Paulinho seria a solução perfeita. Além de realizar o último
pedido daquele homem que morreu da mesma forma que viveu, pateticamente, ele
poderia realizar o seu próprio sonho de ser pai. Mas essa era uma decisão que ele
não poderia tomar sozinho. Precisaria consultar Marilda antes de levar seu
plano adiante.
2013.
Depois
de render todos na casa com uma pistola automática, ele os trancou no suíte do
casal. Ninguém sabia o que estava acontecendo. A festa já havia acabado e, além
de Sérgio, Marilda, Paulinho e Fernanda, só dois amigos ainda estavam no local.
Até os garçons e o pessoal do buffet já tinham sido dispensados há mais de meia
hora. Quem era aquele garoto maluco e o que ele queria? De dentro do quarto, só
se escutava o barulho de seus passos agitados, de um lado para o outro. Ele
estava roubando tudo que podia e destruindo o resto. A cada objeto colocado na
bolsa, ele calculava quanto aquilo valeria em pedra ou erva.
A
sua primeira intenção era assaltar a loja de conveniência do posto de gasolina,
curtir a noite e ser preso novamente no dia seguinte. Após a sua fuga, em que
matou um guarda do presídio depois de roubar-lhe a pistola, todos os policiais
da cidade já deveriam estar com uma foto dele nas mãos e, voltar para a cadeia
era apenas questão de horas. Ele precisava aproveitar. No entanto, quando
estava se preparando para anunciar o roubo, aquele homem sorridente entrou na
loja e foi cumprimentando a todos com uma alegria contagiante, irritante, que fez
com que ele mudasse de ideia. O operador do caixa, o frentista e dois outros
clientes o conheciam pelo nome: Sérgio. E era notório que tratava-se de uma
pessoa queridíssima por todos. O frentista até entrou na loja apenas para parabenizá-lo
pelo aniversário do filho. E ele, sempre muito simpático, atencioso e
comunicativo - era de uma educação impressionante - agradeceu a gentileza
efusivamente Pediu dois sacos de gelo, pagou com dinheiro vivo, se despediu de
todos, disse o seu famoso bordão sobre a vida e saiu a pé, caminhando tão
levemente como se estivesse passeando sobre nuvens brancas sorridentes. “Gente
boa esse Seu Sérgio, hein?”, comentou um dos clientes. Todos concordaram e ainda
teceram outros tantos rasgados elogios ao advogado, dentre os quais um que informou,
sem querer, que ele morava naquele casarão dobrando a esquina, bem no meio da
quadra. O jovem delinqüente comprou um pacote de bala de goma e saiu pesadamente
como se carregasse o mundo nos ombros, em direção ao seu novo destino.
Ele
esperou do outro lado da rua até todos os convidados saírem. Já era quase três
da manhã quando o último carro que estava estacionado na frente da casa foi
embora. Ele então saiu de trás da árvore, atravessou a rua, abriu o portão e anunciou
o assalto. Roubar aquele homem em sua própria casa, não era somente uma forma
de conseguir moeda de troca para sustentar os seus vícios por narcóticos
pesados, mas uma maneira de se vingar da sociedade, da vida, do sistema, de
tudo, de todos. Por que ele também não podia ter uma casa daquelas, com uma
família igual aquela, que lhe oferecesse um aniversário como aquele? Que tipo
de vida poderia levar uma pessoa para sentir-se tão alegre ao ponto de
cumprimentar daquela exagerada forma um simples operador de caixa da loja de
conveniência do posto de gasolina? E quem afinal ele pensava que era para ficar
espalhando aos quatro ventos que a “vida é dura para quem é mole”? A vida é
dura para quem ela quer ser dura. Se ele nunca tinha sido mole, muito pelo contrário,
então por que a vida tinha sido tão dura com ele?
O
que o jovem ladrão percebeu que não iria conseguir carregar, ele quebrou,
destruiu. A televisão, o microondas, o exaustor de ar em cima do fogão
elétrico, o próprio fogão, tudo. Ele vandalizou a casa inteira, com uma raiva
diabólica. Sérgio e os outros escutavam tudo do quarto e estavam cada vez mais
apavorados. O bandido recolheu os celulares e, antes de trancar a porta,
certificou-se de que não havia nenhum telefone nem computador na peça. Eles
estavam isolados do mundo, esperando apenas que o rapaz roubasse tudo que
quisesse e fosse embora logo. Mas isso não aconteceu. Ele abriu a porta do
quarto, apontou a pistola para a cabeça de Sérgio e começou a perguntar pelo
cofre. Ele engatilhou a pistola de uma forma tão agressiva e ameaçadora que
Paulinho, num impulso impensado, gritou e correu desabaladamente em auxílio de
seu pai.
1995.
Sérgio
chegou em casa com os papeis da adoção na mão e encontrou Marilda também com
papeis na mão. Eram os exames do laboratório. Ela finalmente tinha engravidado.
A comemoração foi com risos, choros, gritos de euforia e emoção. Era hora de
ser plenamente felizes. O promissor advogado nunca chegou a contar para sua
esposa a sua intenção de adotar uma criança. Ela poderia achar muito ofensivo
de sua parte e ele a amava demais para causar-lhe tal desagravo, principalmente
agora que ela lhe daria um herdeiro.
Paulo
- nome escolhido em homenagem ao menino que nunca adotou - nasceu com saúde e
foi tratado como um príncipe desde o primeiro dia de vida. Os dois não pouparam
esforços para dar-lhe de tudo do melhor, assim como amor, carinho e altíssimos
valores morais.
2013.
Paulão,
depois de atirar em Paulinho, encarou Sérgio e pensou em estourar seus miolos
ali mesmo. O desesperado pai, só então reconheceu aquele olhar, aqueles olhos.
O marginal, ao escutar o barulho de sirenes, virou as costas e saiu correndo,
sem levar nada do que tinha colocado na bolsa.
Marilda
chorava sobre o corpo do filho. Fernanda desmaiou e os amigos do rapaz estavam
em choque. A polícia chegou ao local e Paulinho ainda estava respirando, mas
completamente inconsciente e com o peito todo ensangüentado.
No
hospital, um delegado informou que o criminoso já tinha sido capturado e que
era um fugitivo da prisão com uma ficha criminal quilométrica. Órfão de pai e
mãe, viciado, traficante, o rapaz tinha sido criado num orfanato do qual saiu
direto para a cadeia por agredir quase até a morte a diretora da instituição.
Paulo da Silva Martins, 19 anos, mais conhecido como Paulão entre os amigos do
crime, filho de uma empregada doméstica, Maria da Silva, que morreu ao lhe dar
a luz, e de um auxiliar de serviços gerais e ex-presidiário, Luis Ferreira
Martins, o qual tinha morrido por atropelamento em via pública quando o filho
ainda era um bebê.
O
médico, depois de exatos trinta e dois minutos, chegou à sala de espera para
dar notícias sobre o estado do garoto. Era gravíssimo e ele teria que sofrer uma
cirurgia muito perigosa e delicada imediatamente. Todos choravam, mas ninguém
sentia o que Sérgio estava sentindo. Ele sabia que não tinha apertado aquele
gatilho com a arma apontada para o seu filho, mas se sentia tão intensamente
culpado como nem o próprio rapaz que tinha atirado deveria estar se sentindo.
Ele agarrou o braço do médico tão fortemente quanto Luis tinha agarrado a sua
mão naquela tarde chuvosa de 1995, olhou bem no fundo dos seus olhos e implorou
com a alma estraçalhada de remorso: “cuide do meu filho”.
2º lugar: CRISTIANO
ARAÚJO VANIEL, por “Desabafo”.
Desabafo
Porto Alegre, 22 de março de 2005.
Oi.
A situação está insustentável.
Minha vida mudou radicalmente desde
que comprei este apartamento aqui na zona sul, perto do Guaíba. O problema não
é a minha nova residência e sim os fatos que ocorreram dentro dela. Estou
morando aqui desde o início do mês e a partir disto aconteceram muitas
reviravoltas.
Primeiro: no segundo dia na nova
moradia, que por sinal é muito aconchegante, a Margarete flagrou-me na cama com
a melhor amiga dela. A discussão foi terrível, digno de cena apoteótica de
telenovela. Lágrimas, chiliques, tapas, ameaças e cacos de vidro e porcelana
por todo o canto.
Segundo: no quinto dia, ela aparece
para pegar o resto de suas coisas e traz, como acessório, seu advogado
(primeiro lugar no campeonato mundial de filhodaputice) para discutir a
papelada do divórcio. Não optei por ter um advogado. Você sabe bem que apesar
de ser formado em Direito, não quis exercer a profissão. Entrei na faculdade de
Medicina e escolhi ajudar as pessoas trabalhando em hospitais. Eu me represento
perante o juiz, portanto. A conversa foi longa, extenuante e extremamente
desconfortável – te juro que tive vontade de matar os dois durante toda a cena.
Terceiro: no oitavo dia, o marido da
Suzana, ex-melhor amiga da Margarete, apareceu com ela no meu apartamento para
brigar comigo. Ele quis ficar conversando para me pegar desprevenido, veio com
aquela fala mansa, mas os hematomas na Suzana eram evidentes. Parti direto para
a porrada. Ganhei um olho roxo, dois hematomas na região lombar e injeções dose
jumbo de adrenalina no corpo com toda aquela situação. Ele ganhou um belo
inchaço no olho esquerdo, três dedos da mão quebrados, e, acho eu, no mínimo
três costelas trincadas. Dias depois encontrei alguns dentes dele no meu
carpete importado da Itália.
Quarto: no décimo primeiro dia,
Gilberto, meu melhor amigo, apareceu com três mulheres bem jovens e muitas
bebidas numa sacola de viagem. Fazia muito tempo que eu não fazia festinhas
deste tipo - considerando que eu era casado há 24 anos com Margarete. As
garotas eram bem joviais e dispostas a todo tipo de sacanagem. Pela primeira
vez cheirei cocaína. A maconha já faz parte da minha rotina desde os tempos da
faculdade – inclusive, você já fumou comigo. Acordei com as três nuas no chão
da minha ampla sala de estar. Gilberto teve que sair mais cedo, pois tinha
plantão na delegacia.
Quinto: no décimo sétimo dia, eu
havia mandado pintar novamente a fachada de minha sacada, pois estes pichadores
de merda sempre escrevem algo ali com suas tintas. Meu apartamento fica no
segundo andar e depois do sétimo dia, quando apareceram pela primeira vez estes
rabiscos, percebi que a portaria não tinha como ver quando estes desocupados
aparecem para danificar o condomínio. Na minha concepção, os vigilantes do
turno da noite têm medo desta gangue porque, suponho, eles devem fazer parte de
uma quadrilha, ou algo assim. Nem os policiais que o Gilberto designou resolvem
este problema. Eu mando pintar e eles, sempre na noite seguinte, estragam tudo
novamente.
Estou cansado. Acho que estou
depressivo. Talvez apenas desesperado e sem condições de suportar tal situação:
divórcio, brigas, putaria e esses bostas que picham meu apartamento. Meu lar.
Meu adorado lar. Será que este lugar é amaldiçoado? Ou será que esta é a minha
sina, meu destino?
Não consigo encontrar resposta. Para
nada.
Agora estou no vigésimo segundo dia
aqui. Ontem mandei pintar a sacada. Detesto verde claro, mas é a cor principal
do prédio. De acordo com o modus operandi, eles devem pichar hoje.
É quase uma da manhã.
Todas as peças do meu apartamento
estão com as lâmpadas desligadas. As janelas estão fechadas. Nada está ligado,
nem televisão ou rádio. Estou sentado no chão do meu quarto, de pijama listrado
vermelho com branco. Minhas costas estão encostadas na parede logo abaixo da
janela. Pela posição estou de frente para a minha cama e se ficar de pé, posso girar e olhar o que está ocorrendo na
rua e, se eu quiser, virar um pouco minha cabeça para a direita e apreciar uma
visão ampla da minha sacada. Basta recolher a persiana que impede a visão. Mas
continuo sentado. Olho para a minha cama com edredom amarelo estendido. E tento
fixar o olhar para o que está abaixo da cama. Sei que é uma grande bolsa preta,
entretanto queria dar mais uma olhada nela.
Enquanto desfruto da escuridão, do
silêncio, penso novamente se esta é uma decisão desesperada, se é um ato de
revolta contra tudo que está acontecendo. Será que fiquei simplesmente louco?
Como tanta gente acredita em Deus? Será que um cristão, diante de toda esta
situação, ainda teria a sua fé? Não sei. Nunca tive fé, acho que não sou a
pessoa mais apropriada para ter uma opinião sobre isto. Até porque, algum
cristão pode ler esta carta e rasgá-la antes de entregar para você. Tudo bem,
eu sei que esta não é a melhor carta para se mandar ou para se receber. É uma
pena, mas não tenho forças para suportar tudo. Eu sei disso. Eu sei que não vou
conseguir combater, nem encarar. Sou um fraco. Não consegui manter um casamento
estável, nem resistir aos encantos maliciosos de uma vagabunda mal comida.
Desde aquela festinha que o Gilberto promoveu aqui, cheiro pó todo dia, pelo
menos quatro vezes ao dia. Tem um prato de sopa no criado-mudo ao lado da minha
cama com duas carreiras de cocaína. Ainda não é o momento certo de aspirá-las.
Agora é quase três da manhã.
Tive uma crise medonha de choro
depois do penúltimo parágrafo. Consegui me controlar agora.
Você lembra quando nos conhecemos no
colégio? Acho que foi na sétima série. Você sempre sentava a minha frente.
Sempre tirávamos as melhores notas. No meio do ano, ganhei meio ponto a mais
que você na prova e então no outro dia virou-se para mim e perguntou o que
achei da prova. História ou geografia? Disso não consigo lembrar. Desde então
andávamos sempre juntos. Estudamos juntos no ensino médio e você até quis fazer
Direito comigo, mas seus pais lhe forçaram a estudar Medicina. Ainda lembro
quando você me ligou e disse que largou o curso no meio e optou por
Veterinária. Nós nos encontramos naquele restaurante, lembra? Ali foi o nosso
primeiro e único beijo.
Que droga! Mais lágrimas.
Espere.
Eles estão no primeiro andar e estão
em três. Três marginais.
...
Acabei de cheirar as duas carreiras
de pó. Apanhei a bolsa preta que estava debaixo da cama. Acabei de abrir e há
várias peças, aparentemente, sem função nenhuma. Opa! Acho que já alcançaram
minha sacada. Montei agora as peças e resultou em um belo fuzil de assalto.
Confiro dentro da bolsa uma pistola prateada bem grande. Fui pra janela e
espertamente não baixei o vidro. Apenas a cortina persiana está bloqueando a
pequena entrada. Engatilhei a arma e apontei-a para os dois garotos que neste
momento estão pichando a sacada. Mirei na cabeça do maior. Puxa vida, são
moleques.
O primeiro tiro derrubou o garoto. A
cara do outro ficou espirrada em sangue, cérebro e pedaços do crânio. O
estardalhaço foi grande. O marginal que está lá embaixo saiu correndo. O outro que
está na sacada está paralisado. Deve ser o choque. Mais um tiro e mais um
cadáver na minha sacada. Procurei o outro pichador, mas ele está muito longe.
Será que consigo acertá-lo. A resposta veio com mais um tiro, mais um trovão e
mais um corpo para o Instituto Médico Legal. Voltei-me para o quarto. Apanhei a
pistola. Termino a carta agora.
Cuida bem da Fernanda.
Nunca esqueça que sempre te amei e
que se voltasse no tempo, diria não para o padre. Sei que já disse isto antes e
você nunca acreditou, mas "água mole em pedra dura tanto bate até que
fura".
Amo-te.
3º lugar: JEAN LUCCA
DE OLIVEIRA BECKER, por “Uma ficção para que não se esqueça...”
Uma ficção para que
não se esqueça...
“As
cicatrizes do corpo, ou do espírito, assinalam com rigorosa precisão e
implacável memória onde estiveram as feridas.” (Mario Benedetti)
Essa história, leitor, ela é uma
ficção. Nunca existiu. Até mesmo seus personagens são inventados, seus nomes
são esdrúxulos. Quanto ao que aconteceu... Bem, qualquer afirmação, neste caso,
seria arriscada demais.
Uma história leva bastante tempo
para acontecer, mas ela pode ser contada em duas, três páginas. No entanto,
nenhuma delas é capaz de esboçar uma verdade, porque a verdade sequer existe e,
em nome dela, cometem-se atrocidades. A minha verdade é pacífica, ela teima em
dizer que essa história é de mentirinha. Ela desrespeita escancaradamente a
cronologia e, mais que isso, ela desrespeita a temporalidade. É algo ocorrido
por volta dos anos 60 ou 70. Não sei bem, é ficção.
Pois bem, esta é a história de
dois irmãos: Individuel e Esquecinilda. Era primavera, sim, acabo de decidir
que era uma bela manhã primaveril. Individuel acorda de sobressalto e, por um
momento, suspira, pensando que tudo não havia passado de um pesadelo. Mas não.
Devia levantar-se e levar uma flor ao túmulo da irmã.
Vinte anos... Vinte impassáveis
anos desde a trágica notícia do assassinato da irmã, e o pior: notícia
impalpável, uma vez que o corpo jamais aparecera. Estariam os restos mortais de
Esquecinilda esquecidos por aí? Pode ser, mas sua memória não. Enquanto esteve
no cárcere, Esquecinilda escreveu tudo o que viveu.
Preciso fazer uma pausa, leitor,
e pedir que lembre que essa história nunca existiu; que um irmão não teve que
enterrar simbolicamente sua irmã porque seu corpo nunca fora encontrado. Não. É
só ficção, eu já disse. Esse tipo de coisa doeria muito se fosse real...
“-
Que saudade dos amigos que longe daqui estão!
Dos
que, em razão dos perigos, estão bem perto do Japão...
Onde
está a dignidade nessa falta de humanidade?
É
a estatal impunidade que nos toma a liberdade.
Às
margens do Nilo, o íbis representa a sabedoria;
Às
margens do Prata, o condor retrata a selvageria!”
Impossível esquecer a polícia
chegando, o desespero dos companheiros, o cheiro do uísque exalando da garrafa
que caía, enquanto os capturavam. A memória é implacável: se você pensa demais
em uma coisa, você fecha os olhos para esquecer e é aí que as coisas vêm.
Individuel, Esquecinilda e outros foram levados a mando do General Torturaldo.
Poucos escaparam. Tiveram que correr como nunca.
Em nome da manutenção de uma
ordem política, de uma segurança nacionalque torturava os seus nacionais (com o
perdão da sonora redundância), os irmãos foram trancados, despidos de todo
direito – bem como de suas roupas e de sua dignidade – e maltratados da maneira
mais rebuscada. Foram abusados de uma maneira que aterrorizaria todas as noites
de quem testemunhasse. Tiveram sua intimidade violada de modo brutal, como se a
violação fizesse parte da ordem normal das coisas. Em
suma, a completa vida nua, aquecida por sociedade fria e crua.
“- Mui difícil é contabilizar, mesmo quantificar
tal sofrimento;
Impossível relembrar, quanto mais imaginar
tamanho tormento...
Dores indizíveis, gritos de horror que ecoam
cada vez mais:
Cem ‘Meu Deus’, oitenta ‘Nãos’, quarenta ‘Me
ajudem’, cinco ‘AIs’...”
Respeito, diálogo... Palavras que
foram arrancadas do dicionário, rasgadas como se fossem desnecessárias. As
dores, elas não passam, quando são na alma. A dor física é horrível, mas ela é
o de menos se você comparar.
Esquecinilda narra seus dias.
Quer desesperadamente que alguém a leia, que alguém grite por ela, porque ela
mesma já não tem forças. Um dia recebe, clandestinamente, uma carta. São os
amigos, companheiros militantes, agora exilados na Inglaterra. São livres! –
ela pensa.
“-
Só porque o céu está nublado o sol não deixou de brilhar
Por
mais que escura nuvem o tente acobertar.
Onde
o sol da liberdade algum dia já raiou
Densa
treva não prospera, embora pense que triunfou...”
Na escuridão, seu corpo foi
abandonado. Nas paredes daquela pequena sala, nomes foram escritos, lamentos
deixados. Naquele pedaço de inferno até os ratos eram mais dignos de existir. A
única lei que imperava era a da força. E como precisava de força para resistir
à dor que ultrapassava os limites do corpo, a extensão da pele...
Ela passa a responder as cartas.
Até que é descoberta e o castigo é (ainda mais) reforçado, afinal, a subversiva
estava tramando. Impossível resistir, e a morte chega – e ela não era
exatamente uma senhora de capa preta como muitos a descrevem. Ela chega no
momento em que o corpo de Esquecinilda está no auge da deplorabilidade, que sua
mente não consegue mais responder a nada. A morte chega com um sorriso e um
murmuro: Livre de novo!
Leitor, não se deixe levar pelo
que lê. Esta é pura criação da fantasia humana. Ninguém nunca foi levado de sua
casa, nem foi torturado ou violado, ou simples e educadamente convidado a mudar
suas convicções. Não se engane, meu leitor: toda escrita é uma ficção. Todo
suplício é mera criatividade da mente de quem vos fala.
Na noite em que aconteceu aquela
fatídica reunião, os companheiros estavam otimistas. Apesar do cerco iminente,
sentiam-se unidos, estavam fortalecidos. Eram a oposição e a eram com orgulho.
Sob clima menos tenso que o costumaz nas reuniões daqueles “subversivos”, eram
acertados os próximos passos, eram discutidos os avanços, sobretudo na cultura
e na arte (que tanto revelou sem dizer). Era o momento da descontração. Então,
os homens do General Torturaldo bateram à porta (belo eufemismo).
E, finalmente, chegamos ao começo
da história.
Individuel e Esquecinilda estão
em casa. Ele lendo o jornal e balançando a cabeça como quem estivesse lendo
disparates; ela tomando um bom banho. De repente, Esquecinilda lembra: – A
comida. Deixei a comida no fogo! O irmão corre para a cozinha e vê que, das
panelas, nada se aproveita. Enquanto a irmã termina de se vestir, o irmão sai
para buscar algo para o almoço e pensa: - Esquecinilda, esquecida como sempre!
Minutos depois, ao ver o irmão entrar com um único prato de comida, a irmã
pensa: - Individuel, individualista como nunca!
Mal sabiam eles que, no fim (que
foi o começo dessa história), Esquecinilda jamais seria esquecida e,
Individuel, jamais um individualista. As cartas! O testemunho. Eles estavam
vivos nas palavras. As cartas seriam a voz de quem já não poderia mais contar os
horrores que sofreu. As cartas de Esquecinilda que foram entregues ao irmão e
ele foi o elo delas com o mundo.
Individuel passou a buscar os
testemunhos dos demais amigos, juntou-os e os mostrou ao mundo, que, já nos
anos 90, não conseguia acreditar. Quem não sentiu, ou não viveu os horrores
narrados nesta história, sempre vai preferir pensar que o testemunho é ficção.
Mas ele não é. E é para que não se esqueça...
Menção
honrosa conto:
MANUELA ALMEIDA DA SILVA SANTO “Do lado de dentro do bolso”.
Do
lado de dentro do bolso
Antes de sair de casa, ao
colocar a mão na maçaneta, reparou a falta das chaves. Investigou por entre os
cômodos, por entre as almofadas, sobre as prateleiras, embaixo da mesa. Pediu
licença às plantas, examinou por debaixo dos vasos e apalpou-lhes a terra.
Sabia que as tinha visto em algum lugar, mas esse lugar não tinha nome e nem
proximidades. Reconstruiu mentalmente todo seu trajeto até o momento presente e
nada obteve além de o impedimento de sair de casa. Quanto mais procuro os
objetos, mais ocultos eles se tornam, pensou.
É como se fossem objetos
perversos, famintos por uma angústia persistente e avassaladora. Objetos que
ficam escondidos, em frestas de armários, portas e janelas, na espreita impiedosa
do desespero alheio. Ficam a observar, silenciosos e invisíveis, a quebra da
onipotência – imaginária - que o ser
humano carrega consigo. Pois é esse mesmo sujeito que, agora, não consegue sair
de casa sem as suas chaves. E não conseguiria comer sua comida sem os seus
talheres – ou sequer andaria por aí sem os seus sapatos. O homem é um súdito de
suas criações. Vive para produzir e vive para o que produz.
O que aquele homem sem as
chaves não sabia, é que, naquele momento, não só as chaves, como também o sofá,
o travesseiro, a mesa de centro, os fósforos, o controle...todos, absolutamente
todos estavam divertindo-se às suas custas. O homem, que passara a madrugada
anterior terminando seus projetos, relatórios e trabalhos, tal como um homem
sério e respeitado nesse mundo dos humanos, era, agora, motivo de piada entre
os seus pertences. Havia entre eles gargalhadas invisíveis, claro, porém
profundas. Elas continham, sobretudo, um fundo de verdade: eram uma tentativa (vã)
de propagar alguns ensinamentos. As gargalhadas funcionavam como aquela
professora carrasca de matemática que, no fim do ano, é a que consegue o melhor
desempenho de seus alunos - e ainda é
presenteada. O soar dessas risadas formavam frases como “aprenda a viver sem mim e eu lhe ajudarei a
viver melhor”. Era uma troca justa, mas unilateral.
O homem, alheio a isso tudo,
começava a angustiar-se mais a cada minuto que passava. Sabia que as chaves não
tinham vida própria e sequer possuíam alguma capacidade locomotiva, mas,
definitivamente, não fazia mais idéia do lugar em que as havia deixado. Resolveu,
então, pegar o celular para fazer ligações. Precisava ligar para o chaveiro e
pedir a sua ajuda, avisar o seu chefe que se atrasaria para a reunião e ligar
para aquela empresa pra avisar que as mercadorias não chegariam a tempo. O celular,
entretanto, estava sem sinal. Ele não sairia de casa e sequer conseguiria
avisar o motivo da sua ausência. O desespero dominou-o nesse momento a tal
ponto que resolveu sentar-se. Sim, sentar-se. Decidiu que o sofá seria, nesse
momento, o seu aliado. Debater-se por soluções acarretaria só no seu desgaste
físico e emocional. Esforçou-se para pensar o que um homem sério e racional
faria nesse momento. Queria agir com seriedade mesmo em uma situação trivial.
Não arriscaria perder a sua honra num momento tão patético como esse. O sofá,
por sua vez, calou-se. Engoliu o riso em sinal de respeito, mas sabia com toda
a sua convicção que patética mesmo era a inabilidade daquele homem em lidar com
imprevistos. Cutucou o abajur para
mostrar-lhe como a seriedade humana era vazia e cômica, pois quanto mais o
homem intensificava o seu raciocínio em
busca da chave perdida, mais distante se tornava dela.
Era um só sujeito que
dependia de um molho com inúmeras chaves. A chave que abria o carro, que abria
a grade, que abria a porta, que abria o escritório, que abria o armário, que
abria o cofre. Um homem repleto de fechaduras, mas que não conseguia entrar em
si mesmo – e isso já não era mais uma piada. Sabia trabalhar, realizar enormes
cálculos matemáticos, fazer transações multinacionais, mas não sabia se
comunicar com ele próprio. E mais: mesmo que tentasse só conseguiria ouvir um
eco, como se estivesse ilhado em si mesmo. Era, sobretudo, um alguém que abria
portas, mas não sabia, definitivamente, abrir o coração.
Os objetos resolveram,
então, parar com a pirraça e a substituíram pela piedade que sentiam naquele
momento. Eles eram generosos com a desgraça alheia e optaram por respeitar esse
momento de extrema fraqueza. Viram ali, na sua frente, um homem sério que
perdera o controle da situação pela simples ausência de um molho de chaves.
“Ele pelo menos tinha controle sobre nós”, uma delas falou. E agora nem isso
tem mais. O imprevisível se sobrepunha à sua rotina marcada a passo e
descontruía o ritual sistemático que ele se submete, dia após dia, para ser um homem-sério-de-juízo.
Passados alguns minutos, as
chaves resolveram encerrar de vez com a brincadeira. Elas chamaram todos os pertences da casa e avisaram que
chegara o momento de parar com o esconde-esconde. Alguns reclamaram, outros
reivindicaram, mas elas estavam firmes em seus propósitos. Justificaram dizendo
que o homem não tinha ninguém junto dele – nem ele mesmo – e que era o dever
delas lhe fazer companhia. Logo após, pediram silêncio e se sacudiram efusivamente
de forma que pudessem chamar a atenção do homem. Ele, surpreso, apalpou os
bolsos e encontrou-as bem ali, de onde nunca haviam saído. Porém, antes que
pudesse rir de si mesmo por tamanha distração, correu para o quarto para pegar
a sua maleta e saiu pela porta como um vulto. E lá se foram as chaves abrir a
grade, o carro, a porta do escritório, as gavetas... E o
sujeito? Continuou sendo um homem sério e de respeito – mas que ainda não sabia
enfrentar imprevistos.
ÉVELLIN
KEITH DA COLLINA “O calabouço da
montanha”.
O calabouço da montanha.
Era uma vez, uma velejadora. Ela tinha o coração
muito puro, o que facilitava sua compreensão sobre o mundo que a cercava.
Ela velejava pois gostava do mar e de sentir a dinâmica dos ventos, ondas e correntes. Mas, gostava ainda mais de conhecer novas praias, novos povos, novas culturas.
Certa manhã, essa velejadora chegou a uma ilha. Era uma ilha bastante bonita e a população a acolheu sorridente.
Ela logo sentiu que as pessoas tinham o coração bondoso, eram dotadas de fé e boa intenção. Inicialmente, sentiu-se muito feliz com a acolhida calorosa. No entanto, passado alguns dias, começou a sentir que algo estava errado. A velejadora sentia no fundo do coração dela uma pontinha de angústia. Não sabia dizer do que era. Aquele povo era muito bom, e estavam sempre empenhados em mostrar-lhe as paisagens mais bonitas da ilha, os espetáculos mais coloridos e vibrantes, liam textos profundos e tocantes, ofereciam frutas doces e suculentas.
Mas, apesar das distrações constantes, a angústia ainda estava lá, presente, insistente em seu coração. Impedindo que ela desfrutasse plenamente de tudo o que os ilhéus ofereciam.
E por mais que seus olhos vissem a beleza do brilho e da cor do que lhe mostravam, ela estava sempre atenta a qualquer dica que apontasse a causa de sua angústia.
Certo dia, meditando silenciosa ouviu um barulho, e conseguiu ver de relance alguém sendo carregado desacordado. A cena foi tão inusitada e rápida que a velejadora não teve reação no momento. Procurou alguns ilhéus e explicou o que havia visto. "Não se preocupe, tudo está em ordem. Olhe, veja aquele pássaro, que lindo, os antigos diziam que suas asas vermelhas indicam que o céu abençoa nosso o amor do nosso povo", respondeu um.
Mas, aquilo a preocupou, e a asa vermelha do pássaro, outrora tão digna de sua admiração, agora não atraia sua atenção, apenas seu olhar vago. Enquanto sua cabeça buscava a verdade.
Perguntou a outros que lhe disseram. "Foi apenas um desmaio, as pessoas que passam por isso são tratadas." Outros se mostravam incomodados com a pergunta "Deixe disso, não há nada". Outros não acreditaram. Outros diziam que algumas pessoas precisam de tratamento especial, pois só assim todos podem ser felizes, é a vontade dos céus, o sacrifício de uns garantem a felicidade de todos, ponto final, pois perguntas e especulações chateiam os deuses.
Nenhuma das respostas a satisfazia, e sua angústia aumentava. Os espetáculos perderam o interesse e toda generosidade dos ilhéus pareciam sem propósito, incômodas até, por a desviarem da resolução do conflito em que se encontrava. Pensativa, passou a caminhar sozinha por lugares isolados. Foi quando encontrou um ilhéu diferente. Ele estava sozinho e não usava penas coloridas e pedras brilhantes em suas roupas.
Ela não hesitou, e mesmo sem conhecer esse senhor de barbas brancas perguntou "Porque me sinto tão angustiada?" Como se esperasse por aquela pergunta, o maltrapilho lhe deu as costas e disse "Me acompanhe."
Seguiram por uma trilha fechada. Depararam-se com uma montanha, o senhor removeu umas folhagens e revelou uma passagem escondida para uma caverna. Entraram silenciosos. A velejadora sentia seu coração sendo cada vez mais oprimido, sem saber porque. Não estava curiosa, estava triste, cada passo que davam para dentro daquela caverna úmida e sombria, sentia seu coração mais e mais angustiado, desesperado como se as paredes daquela caverna sofressem e pedissem ajuda.
A escuridão era tal que não podiam ver nada. Sentiu em certo instante o braço do senhor impedindo sua caminhada. Parou e passou a ouvir uns gemidinhos baixo. Sentiu que vinham de um lugar mais amplo.
Num dado momento chegou uma luz. Aos poucos foi definindo em seu campo visual que a trilha em que estavam havia chego na parede de um amplo salão, na entranha daquela montanha.
Aproximou-se da beirada de modo a ver sem ser vista. Viu inúmeras pessoas nuas e sujas, a luz vinha de uma tocha carregada por um ilhéu, outros traziam baldes com frutas velhas e iam despejando entre a multidão de famintos, que se agachavam para comer as frutas, mecanicamente, sem brigas nem interação alguma. Um ilhéu identificou um cadáver no chão, o colocou friamente sobre um carrinho. Depois de todos os baldes esvaziados e todos os cadáveres recolhidos, afastaram-se, tão silenciosos quanto haviam entrado.
Retornando a absoluta escuridão e tristes ruídos. Sentiu que o velho passou a seguir a trilha para saída da caverna. A velejadora, chocada com o que havia assistido, seguiu trôpega e confusa.
A saída da caverna foi dolorosa, a luz cegava seus olhos, seu coração batia forte. Entregou-se a um choro compulsivo. Arfava sem ar, gritava de dor e lágrimas vertiam de seus olhos como rios. O velho a observava, inundado numa paz indecifrável. Passado esse momento de maior desespero, o senhor os conduziu à beira de um rio de águas muito cristalinas. Onde a velejadora lavou suas lágrimas e tomou um pouco de água.
"Quem são?"
"Os indesejados. Pessoas que apresentam alguma característica física não aceita. Pelos muito escuros, barbas grossas, olhos claros. Ou que tenham hábitos desagradáveis, não queiram trabalhar, não gostem da roda da fogueira, ou questionem os deuses."
"Todos concordam com esse tratamento?"
"Não divulgado claramente. Muitos ignoram totalmente, absortos por completo nas distrações que a ilha oferece. Outros não suportam pensar no que se passa, e embora desconfiem que haja algo injusto preferem não pesquisar muito afundo, tentando convencer-se de que tudo está ótimo. Outros temem ser capturados, e por mais que tenham alguma compreensão do que acontece e julguem injusto não sabem como impedir. O mais triste é que a maioria acredita que essa seja a vontade dos céus, e que se os indesejados forem expostos ao Sol, esse ficará tão horrorizado que jamais voltará a brilhar novamente, e todos perecerão de fome e frio."
A velejadora ficou a pensar. Ela sabia que o Sol não se incomodava com pessoas de pelos negros. Pois já havia visitado muitas praias e visto que as pessoas de olhos azuis ou pelos se expunham ao Sol e que este voltava a brilhar no dia seguinte, independente de qualquer coisa! Pensar no sofrimento daquelas pessoas a incomodava. Sofriam a toa, por uma crença infundada.
Ela velejava pois gostava do mar e de sentir a dinâmica dos ventos, ondas e correntes. Mas, gostava ainda mais de conhecer novas praias, novos povos, novas culturas.
Certa manhã, essa velejadora chegou a uma ilha. Era uma ilha bastante bonita e a população a acolheu sorridente.
Ela logo sentiu que as pessoas tinham o coração bondoso, eram dotadas de fé e boa intenção. Inicialmente, sentiu-se muito feliz com a acolhida calorosa. No entanto, passado alguns dias, começou a sentir que algo estava errado. A velejadora sentia no fundo do coração dela uma pontinha de angústia. Não sabia dizer do que era. Aquele povo era muito bom, e estavam sempre empenhados em mostrar-lhe as paisagens mais bonitas da ilha, os espetáculos mais coloridos e vibrantes, liam textos profundos e tocantes, ofereciam frutas doces e suculentas.
Mas, apesar das distrações constantes, a angústia ainda estava lá, presente, insistente em seu coração. Impedindo que ela desfrutasse plenamente de tudo o que os ilhéus ofereciam.
E por mais que seus olhos vissem a beleza do brilho e da cor do que lhe mostravam, ela estava sempre atenta a qualquer dica que apontasse a causa de sua angústia.
Certo dia, meditando silenciosa ouviu um barulho, e conseguiu ver de relance alguém sendo carregado desacordado. A cena foi tão inusitada e rápida que a velejadora não teve reação no momento. Procurou alguns ilhéus e explicou o que havia visto. "Não se preocupe, tudo está em ordem. Olhe, veja aquele pássaro, que lindo, os antigos diziam que suas asas vermelhas indicam que o céu abençoa nosso o amor do nosso povo", respondeu um.
Mas, aquilo a preocupou, e a asa vermelha do pássaro, outrora tão digna de sua admiração, agora não atraia sua atenção, apenas seu olhar vago. Enquanto sua cabeça buscava a verdade.
Perguntou a outros que lhe disseram. "Foi apenas um desmaio, as pessoas que passam por isso são tratadas." Outros se mostravam incomodados com a pergunta "Deixe disso, não há nada". Outros não acreditaram. Outros diziam que algumas pessoas precisam de tratamento especial, pois só assim todos podem ser felizes, é a vontade dos céus, o sacrifício de uns garantem a felicidade de todos, ponto final, pois perguntas e especulações chateiam os deuses.
Nenhuma das respostas a satisfazia, e sua angústia aumentava. Os espetáculos perderam o interesse e toda generosidade dos ilhéus pareciam sem propósito, incômodas até, por a desviarem da resolução do conflito em que se encontrava. Pensativa, passou a caminhar sozinha por lugares isolados. Foi quando encontrou um ilhéu diferente. Ele estava sozinho e não usava penas coloridas e pedras brilhantes em suas roupas.
Ela não hesitou, e mesmo sem conhecer esse senhor de barbas brancas perguntou "Porque me sinto tão angustiada?" Como se esperasse por aquela pergunta, o maltrapilho lhe deu as costas e disse "Me acompanhe."
Seguiram por uma trilha fechada. Depararam-se com uma montanha, o senhor removeu umas folhagens e revelou uma passagem escondida para uma caverna. Entraram silenciosos. A velejadora sentia seu coração sendo cada vez mais oprimido, sem saber porque. Não estava curiosa, estava triste, cada passo que davam para dentro daquela caverna úmida e sombria, sentia seu coração mais e mais angustiado, desesperado como se as paredes daquela caverna sofressem e pedissem ajuda.
A escuridão era tal que não podiam ver nada. Sentiu em certo instante o braço do senhor impedindo sua caminhada. Parou e passou a ouvir uns gemidinhos baixo. Sentiu que vinham de um lugar mais amplo.
Num dado momento chegou uma luz. Aos poucos foi definindo em seu campo visual que a trilha em que estavam havia chego na parede de um amplo salão, na entranha daquela montanha.
Aproximou-se da beirada de modo a ver sem ser vista. Viu inúmeras pessoas nuas e sujas, a luz vinha de uma tocha carregada por um ilhéu, outros traziam baldes com frutas velhas e iam despejando entre a multidão de famintos, que se agachavam para comer as frutas, mecanicamente, sem brigas nem interação alguma. Um ilhéu identificou um cadáver no chão, o colocou friamente sobre um carrinho. Depois de todos os baldes esvaziados e todos os cadáveres recolhidos, afastaram-se, tão silenciosos quanto haviam entrado.
Retornando a absoluta escuridão e tristes ruídos. Sentiu que o velho passou a seguir a trilha para saída da caverna. A velejadora, chocada com o que havia assistido, seguiu trôpega e confusa.
A saída da caverna foi dolorosa, a luz cegava seus olhos, seu coração batia forte. Entregou-se a um choro compulsivo. Arfava sem ar, gritava de dor e lágrimas vertiam de seus olhos como rios. O velho a observava, inundado numa paz indecifrável. Passado esse momento de maior desespero, o senhor os conduziu à beira de um rio de águas muito cristalinas. Onde a velejadora lavou suas lágrimas e tomou um pouco de água.
"Quem são?"
"Os indesejados. Pessoas que apresentam alguma característica física não aceita. Pelos muito escuros, barbas grossas, olhos claros. Ou que tenham hábitos desagradáveis, não queiram trabalhar, não gostem da roda da fogueira, ou questionem os deuses."
"Todos concordam com esse tratamento?"
"Não divulgado claramente. Muitos ignoram totalmente, absortos por completo nas distrações que a ilha oferece. Outros não suportam pensar no que se passa, e embora desconfiem que haja algo injusto preferem não pesquisar muito afundo, tentando convencer-se de que tudo está ótimo. Outros temem ser capturados, e por mais que tenham alguma compreensão do que acontece e julguem injusto não sabem como impedir. O mais triste é que a maioria acredita que essa seja a vontade dos céus, e que se os indesejados forem expostos ao Sol, esse ficará tão horrorizado que jamais voltará a brilhar novamente, e todos perecerão de fome e frio."
A velejadora ficou a pensar. Ela sabia que o Sol não se incomodava com pessoas de pelos negros. Pois já havia visitado muitas praias e visto que as pessoas de olhos azuis ou pelos se expunham ao Sol e que este voltava a brilhar no dia seguinte, independente de qualquer coisa! Pensar no sofrimento daquelas pessoas a incomodava. Sofriam a toa, por uma crença infundada.
Passou a reparar nos gestos e fala dos ilhéus e
desconfiou que havia entre a maioria deles um medo constante, um desconforto,
um sentimento de culpa, que era dissimulada. Ignoravam as verdadeiras causas
dos que desapareciam, e por isso temiam. Sem questionar, pois os que
questionavam sumiam. Alguns rumores diziam que eram duramente castigados pelos céus.
Assim, não sabiam se temiam aos castigos, ou aos céus, apoiando os castigos.
Muito atenta a velejadora ficou, analisando a todos, simulando o mesmo contentamento que via nos rostos aflitos. Até que reparou em uma ilhéu, que escondida esfregava um maço de ervas em sua perna. Essa ilhéu era uma amiga sua. Tentou aproximar-se de modo a não assustá-la. Foi em vão. Passado o susto e tendo sido as ervas jogadas longe, a velejadora questionou:
"Porque faz isso?"
"Acho que meus pelos são muito negros. Minha mãe sempre me disse para esfregar essas ervas neles toda semana para clareá-los."
"Você sabe o que acontece com quem exibe pelos negros?"
A moça negou com a cabeça, e a velejadora sentindo que podia confiar totalmente na moça e que ela compreenderia, contou tudo o que havia visto e sentido. E explicou sobre as outras praias, onde pessoas com espessos pelos negros se bronzeiam sob o Sol brilhante.
A moça não chorou desesperadamente. Ela lembrou-se de sua mãe que havia sumido, cerrou os dentes com raiva e falou:
"Isso tem que acabar".
Então, bolaram um plano. A moça deixaria seus pelos negros crescerem escondidos e no dia do evento da "graça aos céus e ao Sol" iria subir ao palco principal e mostrar a todos que seus pelos haviam sido expostos ao Sol e no entanto, este continuava a agraciá-los com seu brilho. Sem deixar a menor dúvida de que não havia necessidade de temer ao Sol e que todos poderiam desfrutar juntos e livres.
Assim, o plano seguiu. Embora a moça tenha sentido muito medo de ser descoberta, deixou seus pelos crescerem, disfarçados por roupas compridas. Inscreveu uma apresentação especial para o dia, uma declamação, que foi aceita pela comissão organizadora, e seria exposta ao meio dia.
No dia de "graça ao céus e ao Sol" toda comunidade festejava contente, cantando seus hinos, e louvando aos céus e ao Sol. Diversos espetáculos se faziam presente.
Ao meio dia, todos voltaram sua atenção ao palco principal, pois a moça e a velejadora fizeram uma propaganda muito boa sobre essa declamação, deixando todos curiosos.
A moça começou sua declamação:
"Ao longo desses anos, temos tido muita graça proporcionada pelos céus e pelo Sol. Acreditamos que somos felizes pois nos empenhamos em manter a ordem. E que o Sol jamais brilharia sobre nós se permitíssemos que pessoas diferentes de nós tivessem os mesmos privilégios e direitos."
O silêncio era dominante, todos olhavam assustados, pois em verdade, os ilhéus não sabiam exatamente como funcionava o Sol e o que exatamente separava os desejáveis dos indesejáveis. Eles tinham medo de falar e pensar sobre isso. E começaram a se perguntar se a moça estava fazendo algo bom ou ruim. Esse assunto nunca havia sido tratado de forma aberta.
"Pois em verdade eu vos digo, meus pelos espessos e negros estão a semanas expostos ao Sol, e ele brilha inalterável sobre mim, nesse momento."
Dizendo isso a moça tirou a fantasia de penas e brilhantes que escondia seus pelos e mostrou para toda a gente ver que o Sol não se incomodava com pelos negros.
O pânico se espalhou. Alguns gritavam, outros aplaudiam, outros desmaiavam, ninguém conseguia entender muito bem o que se passava.
Os mesmos ilhéus que entraram no calabouço, agarraram a moça e a retiraram do palco. Essa seguia gritando, tentando se libertar:
"Todos podem viver no Sol, não há distinção, o Sol não quer que ninguém mais sofra, libertem-se do medo. Amem-se, pessoas sofrem e morrem por causa do nosso temor ao Sol. Libertem-se!!!"
A velejadora gritava entre a população:
"É verdade! Eu visitei muitos lugares e o Sol brilha em todos eles, sobre as mais diversas pessoas. Existe nessa ilha um calabouço onde pessoas vivem em condições degradantes por causa que vocês tem medo de perderem o Sol. Mas, isso é uma ilusão. O Sol brilha. E brilha melhor ainda quando não há medo, nem opressão".
A velejadora também foi levada sob o olhar incrédulo de todos.
Elas foram levadas ao conselho diretor da ilha. Em um local secreto, mostraram a elas uma grande pedra pendurada e disseram:
Muito atenta a velejadora ficou, analisando a todos, simulando o mesmo contentamento que via nos rostos aflitos. Até que reparou em uma ilhéu, que escondida esfregava um maço de ervas em sua perna. Essa ilhéu era uma amiga sua. Tentou aproximar-se de modo a não assustá-la. Foi em vão. Passado o susto e tendo sido as ervas jogadas longe, a velejadora questionou:
"Porque faz isso?"
"Acho que meus pelos são muito negros. Minha mãe sempre me disse para esfregar essas ervas neles toda semana para clareá-los."
"Você sabe o que acontece com quem exibe pelos negros?"
A moça negou com a cabeça, e a velejadora sentindo que podia confiar totalmente na moça e que ela compreenderia, contou tudo o que havia visto e sentido. E explicou sobre as outras praias, onde pessoas com espessos pelos negros se bronzeiam sob o Sol brilhante.
A moça não chorou desesperadamente. Ela lembrou-se de sua mãe que havia sumido, cerrou os dentes com raiva e falou:
"Isso tem que acabar".
Então, bolaram um plano. A moça deixaria seus pelos negros crescerem escondidos e no dia do evento da "graça aos céus e ao Sol" iria subir ao palco principal e mostrar a todos que seus pelos haviam sido expostos ao Sol e no entanto, este continuava a agraciá-los com seu brilho. Sem deixar a menor dúvida de que não havia necessidade de temer ao Sol e que todos poderiam desfrutar juntos e livres.
Assim, o plano seguiu. Embora a moça tenha sentido muito medo de ser descoberta, deixou seus pelos crescerem, disfarçados por roupas compridas. Inscreveu uma apresentação especial para o dia, uma declamação, que foi aceita pela comissão organizadora, e seria exposta ao meio dia.
No dia de "graça ao céus e ao Sol" toda comunidade festejava contente, cantando seus hinos, e louvando aos céus e ao Sol. Diversos espetáculos se faziam presente.
Ao meio dia, todos voltaram sua atenção ao palco principal, pois a moça e a velejadora fizeram uma propaganda muito boa sobre essa declamação, deixando todos curiosos.
A moça começou sua declamação:
"Ao longo desses anos, temos tido muita graça proporcionada pelos céus e pelo Sol. Acreditamos que somos felizes pois nos empenhamos em manter a ordem. E que o Sol jamais brilharia sobre nós se permitíssemos que pessoas diferentes de nós tivessem os mesmos privilégios e direitos."
O silêncio era dominante, todos olhavam assustados, pois em verdade, os ilhéus não sabiam exatamente como funcionava o Sol e o que exatamente separava os desejáveis dos indesejáveis. Eles tinham medo de falar e pensar sobre isso. E começaram a se perguntar se a moça estava fazendo algo bom ou ruim. Esse assunto nunca havia sido tratado de forma aberta.
"Pois em verdade eu vos digo, meus pelos espessos e negros estão a semanas expostos ao Sol, e ele brilha inalterável sobre mim, nesse momento."
Dizendo isso a moça tirou a fantasia de penas e brilhantes que escondia seus pelos e mostrou para toda a gente ver que o Sol não se incomodava com pelos negros.
O pânico se espalhou. Alguns gritavam, outros aplaudiam, outros desmaiavam, ninguém conseguia entender muito bem o que se passava.
Os mesmos ilhéus que entraram no calabouço, agarraram a moça e a retiraram do palco. Essa seguia gritando, tentando se libertar:
"Todos podem viver no Sol, não há distinção, o Sol não quer que ninguém mais sofra, libertem-se do medo. Amem-se, pessoas sofrem e morrem por causa do nosso temor ao Sol. Libertem-se!!!"
A velejadora gritava entre a população:
"É verdade! Eu visitei muitos lugares e o Sol brilha em todos eles, sobre as mais diversas pessoas. Existe nessa ilha um calabouço onde pessoas vivem em condições degradantes por causa que vocês tem medo de perderem o Sol. Mas, isso é uma ilusão. O Sol brilha. E brilha melhor ainda quando não há medo, nem opressão".
A velejadora também foi levada sob o olhar incrédulo de todos.
Elas foram levadas ao conselho diretor da ilha. Em um local secreto, mostraram a elas uma grande pedra pendurada e disseram:
“Vocês estão condenadas por terem desobedecido a
Lei de Blasfêmia. A pena é ter a cabeça esmagada por essa rocha. Mas, como é
muito dificultoso pendurar a rocha novamente, deixamos que vocês partam no
veleiro desde que assinem esse termo de conduta, alegando que jamais voltaram
na ilha o em sua área naval estabelecida pelo Decreto de Área Naval”
A moça e velejadora, acreditando que haviam
cumprido uma missão, e que a informação havia sido passada aos ilhéus que
haveria de reivindicar a soltura dos “indesejáveis”, assinaram o papel e
partiram em busca de ares mais justos.
O povo ficou em sua maioria muito chocado, e consideraram um terrível e absurdo desrespeito o que a moça e a velejadora armaram. Consideraram uma afronta aos céus e um verdadeiro desrespeito à crença deles. Todos concordaram que não eram necessárias atitudes tão extremas assim. Alguns achavam que a o moça e a velejadora deveriam ter sido queimadas.
Outros, ainda que poucos, começaram a pensar em tudo o que foi dito. Espera-se que algum dia, a quantidade de questionadores e pensadores aumente, formando uma massa crítica, capaz de mudar as crenças e valores da ilha. E que o calabouço da montanha deixe de existir, as pessoas sejam libertadas e possam pensar e ser como bem entenderem e que ninguém mais tenha medo de viver sem o Sol, mas possam desfrutá-lo de maneira plena.
LUCIANO TEIXEIRA CÁCERES “O livro”.
O Livro
Era madrugada e ele estava em seu quarto, quieto,
lendo um livro que já tinha lido há muito tempo, mas que resolvera ler
novamente. Estava a fim de ler alguma coisa e olhou pra sua prateleira cheia de
livros lidos e alguns poucos ainda não passados por seus olhos. Mesmo assim
decidira-se por um repetido, a história de um assassinato mal resolvido que
dava várias reviravoltas e tinha um final surpreendente. Não seria tão
surpreendente dessa vez, mas ele achou que valia a pena. Não queria ler em sua
cama, achava que cama era lugar para dormir ou para não pensar em nada, nunca
ler um livro ou fazer outra coisa. Então resolveu ler sentado no chão,
encostado na parede que estava um pouco fria para suas costas quentes, o que
foi resolvido rapidamente com um travesseiro entre o que estava quente e o que
estava frio. Ficou até mais confortável. O frio e a dureza do chão não eram um
incômodo, mas dificilmente conseguiria ficar assim por muito tempo. Então pegou
o cobertor e colocou-o dobrado no chão e sentou-se em cima. Pronto, agora sim
podia ler em paz. Tinha lido uma meia-hora quando ouviu alguma coisa do lado de
fora de seu quarto, o que era bem estranho, visto que morava sozinho em uma
casa com três peças somente. Seria algum animal nojento e peçonhento que teria
sido atraído pela louça suja que ele deixara na pia? A preguiça cobra seu
preço, pensou. O barulho parou e ele decidiu continuar sua releitura. Apesar
dos anos, o texto ainda mantinha-se fresco em sua memória, o que foi uma surpresa.
Sempre
fora um voraz leitor. Quando novo, lia o que vinha pela frente, sem selecionar
muito. Gibis, revistas, jornais, folhetos publicitários. Tendo letra colada uma
na outra já era o bastante. Depois começou a escolher o que lia, porém a avidez
continuava. Ficou encantado com romances policiais, até Agatha Christie deixar
de ser um mistério para ele. Pulou então para ficções científicas. E Asimov e
F.P. Dick ficaram plausíveis demais. Terror e suspense foram seus próximos
alvos. Mas Poe e Lovecraft não o assustaram por muito tempo. As distopias de
Orwell e Huxley não tiraram seu otimismo quanto ao futuro. Logo contos,
crônicas, poesias, poemas não o satisfaziam mais. Tinha uma fome por leitura e
ela não estava sendo devidamente saciada. Não se interessava por não-ficção.
Biografias, História, reportagens nada disso o interessava. Gostava do que não
existia, do que não era real, pois a realidade, para ele, não valia a pena ser
aproveitada.
Não
que sua vida fosse ruim, tinha uma família comum, sem extravagâncias ou
problemas graves. Os que todas as famílias medianas têm. Conflito entre irmãos,
discussão entre os pais sobre tal assunto, fim de semana juntos em casa ou
viajando, cachorro, gato, papagaio. Sua vida era comum demais e a literatura o
tirava dessa rotina, dessa vida sem excentricidades.
Então,
para suprir essa necessidade, comprava qualquer livro que achasse que poderia
saciar a sua fome. Um dia, em um sebo, viu um livro com uma capa vermelha, com
o título e o nome do autor já gastos. Uma capa dura, de um vermelho sangue um
tanto coagulado pelo tempo. Estava jogado em meio a um monte de outros livros
velhos. Só o chamou a atenção porque estava equilibrado de uma forma que
poderia cair a qualquer momento. Pegou o livro. Abriu-o para ler o título, mas
estava faltando as páginas iniciais. A história só começava no segundo
capítulo. Leu algumas linhas com dificuldade, pois as letras estavam um pouco
apagadas e as páginas, finas. Mesmo assim, decidiu comprá-lo. Mais por tédio do
que pelo interesse que a curta leitura lhe causou. De qualquer modo, saiu
barato o suficiente para não se arrepender de ter comprado aquele livro velho
sem título e sem começo. Ao chegar em casa, após comer alguma coisa, sentou-se
e pegou o livro para começar a ler. Logo nas primeiras páginas do segundo
capítulo, achou que tinha desperdiçado seu dinheiro em algo muito ruim. Porém,
a medida que continuava, sentia uma compulsão por seguir adiante, sem parar.
Apesar das páginas desgastadas, leu os cinco primeiros capítulos rapidamente,
até que finalmente conseguira tirar os olhos daquelas palavras encantadoras. O
mais estranho é que continuava a achar a história ruim, mas era como se
precisasse ler até o final. Aquilo o fez sentir-se estranho, pois nunca sentira
essa compulsão antes. Não obstante, gostou do que sentiu e decidiu voltar a
ler. Leu mais alguns capítulos e, sentindo sono, foi dormir. Dormira muito bem
dessa vez, algo um tanto raro nos últimos dias. Não sabia dizer porquê, já que
sua rotina não tinha se alterado em nada nem havia preocupações em excesso para
lhe tirar o sono.
Acordara
com fome, muita fome. Levantou-se, fez sua higiene, correu para a cozinha e
preparou rapidamente três sanduíches enquanto o café era passado. Assim como
fez, comeu, e logo estava ele sentado no sofá, lendo o velho livro sem título.
Não teve muita dificuldade em conseguir ler dessa vez, já que as letras estavam
um pouco menos gastas neste trecho e as páginas não estavam quase
transparentes, como no início. Pelo visto, o tempo ainda não tinha agido
completamente sobre o livro e acreditou que o seu miolo estaria completamente
intacto, seguindo a lógica até agora. Imaginou se conseguiria ler o final, mas
não quis olhar as ultimas folhas, já que odiava saber o fim das histórias
antecipadamente. Apesar da melhor qualidade do material, já não lia com tanta
velocidade, a história parecia estar ficando mais densa, pesada; era necessária
uma maior concentração e ele gostava de desafios.
Ainda
estava achando que era baixa literatura e não entendia mais essa curiosidade
que o compelia a continuar lendo para saber o que vinha a seguir. Era como se
precisasse saber, como se sua mente necessitasse daquela leitura para ficar
tranquila. Após duas horas, não aguentou mais e parou, cansado. Como o livro o
cansava, pensou. Isso nunca acontecera antes. Estava acostumado a ler um livro
inteiro em um dia, ou uma noite. Lia, quando podia, cerca de oito horas por dia
e só não lia mais porque a realidade sempre o chamava por algum motivo.
Trabalho, comida, limpeza, amigos(muito raros), família, que reclamava que
sempre lia demais e que os deixava de lado por causa dos malditos livros.
Principalmente seu pai, que mesmo sendo um leitor também, não aceitava o fato
do filho ter como único desejo, ler. Até mesmo seu trabalho como ajudante na
biblioteca era por vezes prejudicado pela sua avidez. Por sorte tinha uma chefe
compreensível.
Mas
era feriadão e não tinha que se preocupar com essas coisas. Após um breve
descanso, voltou ao seu novo desafio. Leu deitado dessa vez, já que estava um
pouco preguiçoso e preferiu ficar mais à vontade. Estava certo quanto ao meio
do livro, estava bem melhor conservado do que o início e agora via muito
claramente as letras negras e bem impressas numa página grossa e alva. Nem
amarelada nas pontas estavam. Recomeçou a leitura daquele estranho texto, que
já não lhe parecia tão ruim assim. A medida que lia, sua opinião mudou de vez
quando chegou exatamente na metade do livro. Já achava uma estória incrível e
fascinante. Não queria mais largar e, mesmo sentindo-se cansado, resolveu
continuar a leitura. Iria chegar ao fim desse livro. Não parou mesmo quando
seus olhos estavam ardendo devido ao esforço. Seus braços pareciam mais pesados
que o corpo e o livro mais pesado que os braços. Sentia-se cada vez mais
cansado e fraco, mas não conseguia mais parar de ler e nem queria. Sua teoria
de que as páginas finais do livro estariam gastas foi por terra quando viu que
elas estavam até melhor que as do meio. Foi quando percebeu que as páginas
iniciais também estavam assim e não entendeu quando viu que aquelas letras,
antes apagadas, agora estavam como novas. Ficou surpreso, mas não a ponto de
largar a leitura. Não interessava mais o estado do livro, ou o seu. Somente
chegar ao fim e descobrir o que acontecia no final dessa estória, que já era
por ele considerada como a melhor de todos os tempos. Finalmente um livro que o
completava, que o fazia esquecer a realidade chata e comum.
Não
se importava mais com o seu estado cada vez pior, estava ficando mais fraco,
mais magro, mais cansado. Era como se o livro estivesse sugando toda a sua
força, sua saúde, sua vida. E a medida que lia, o livro ia ficando cada vez
mais renovado, mais viçoso. Estava nas últimas linhas e lia com uma dificuldade
imensa. Já não o segurava mais, estava deitado sobre o livro, com a cabeça
erguida o suficiente somente para conseguir ler as palavras. Quase não
enxergando mais, leu finalmente as últimas palavras e, juntando suas últimas
forças, fechou o livro, agora totalmente renovado, de um vermelho-sangue recém
liberto das veias. E, no seu último olhar, percebeu o título, agora totalmente
legível em letras negras: “O Vampiro”, então sorriu e morreu.
Crônicas
1º lugar: SABRINA DA
SILVA DE OLIVEIRA, por “As quatro estações”.
Epilogo
Existem dias que nos lembramos de
todas as coisas, assim de modo singelo, é como se pertencêssemos ao mundo de
alguma maneira a deixá-lo nos penetrar o intimo da memória. Algumas outras
vezes também nos lembramos de coisas que não precisam ser lembradas, pois ainda
continuam a acontecer, e por vezes somos obrigados a pensar em momentos que não
nos fazem bem.
Quando eu vejo a neve caindo, aqui da
janela do meu quarto, sinto que o tempo me ensinou muitas coisas. Aprendi por
exemplo que se eu tentar acender uma lâmpada queimada ela não funcionará, o que
me ajuda a não ficar com raiva da não existência da luz. Sei que não se pode
dar dois passos ao mesmo tempo e me impede de querer que as coisas venham até
mim antes do tempo. Entre outras coisas mais, que aprendi ao longo da vida,
aprendi com você que nunca poderia lhe esquecer. Não se assuste com tais
palavras, você mesmo com suas teorias me ensinou a ser assim.
Primavera
Lembro-me da primeira vez que nos
encontramos, era primavera, as flores diversas exalavam seu perfume no ar, os
ipês estavam mais amarelos do que nunca. O céu azul lindo, coberto por muitas
imagens de nuvens a dizer como é bom sonhar. Eu havia saído para minha corrida
matinal. Mais tudo estava tão belo que eu me deitei sobre a grama. Algumas
formigas se comunicavam perto dali, mais longe o suficiente para que não me
incomodassem, você chegou, fazendo sombra a meu sol, estava a alongar. Eu
levantei vagarosamente. Encarei-o. Você sorriu. Não precisou dizer-me nada, aprendi
enfim que existia amor à primeira vista. Despistei e segui-te. Corria tanto que
quase não podia alcançá-lo, por fim manteve o trotear. Já havíamos corrido o
bastante quando me cansei, parei apoiando os braços sobre as pernas. Você olhou
para trás, dizendo:
- Acho que precisa treinar um pouco
mais guria.
- É eu sei sempre me distraio quando
vou correr. Então não atinjo objetivos.
- Entendo, no entanto temos que focar
nossas idéias, nossa direção, se não conseguirmos fazer isto para algo que nos
beneficiaria unicamente, não faremos nada pelo próximo.
Então você sorriu mais uma vez e se
foi. Passei a correr ali todos os dias nos mesmo horário. Não voltei a vê-lo.
Modifiquei os turnos, passei a ficar sentada no mesmo banco e nada, não ti vi
mais. Foi então que desisti.
Verão
Eu estava na sacada do quarto,
observava o movimento na rua, carros iam e vinham frenéticos, aturdidos. Ir e
vir, chegar e partir, nascer e morrer era o que tudo parecia indicar nosso fim,
nosso dilema era concebido por imagens tão estranhas de nós mesmos, que
passávamos batido ao verdadeiro sentido de viver, que eu mesma ainda não sei
qual é.
O verão chegou, era tudo tão quente,
pessoas indo para lá e para cá, suadas, sujas. Meu ar condicionado fazia um
barulho insuportável a noite, e eu não podia dormir. Durante o dia tinha que
enfrentar todos aqueles senhores de ternos, julgamentos, leituras e
discernimento. Já não suportava tanta melancolia. Era do trabalho para casa de
casa para o trabalho. Argentina passou a ser meu pior pesadelo, e se isto não
bastasse ainda tinha lhe guardado na memória. Isto era o que mais me
incomodava, era como se primavera quisesse dizer você. Tinha raiva por ter
aparecido na melhor estação do ano, a minha predileta, só podia ser por isto
que não me saía da memória.
Foram longos meses, de dor e solidão.
Sofria a falta do desconhecido, como pode algo nos tornar assim? Pensei. Quando
a natureza já anunciava a chegada do outono minha mente passou a ser obsessiva
em te esquecer, mais quanto mais eu queria, aquilo se tornava impossível.
Cheguei a ir ao psicólogo e não adiantou. Foi o pior verão de todos.
Outono
Folhas em todas as partes, a doce
sensação de que tudo se vai, de que as coisas findam, de que nada é duradouro o
bastante para ser eterno. Contemplando uma grande rua, ornada pro grandes
arvores de galhos secos e limpos, eu estava. A pisar sobre folhas de tom
laranja, que faziam barulhos quebrando-se, me dizendo que eu o havia esquecido
que aquilo havia passado, o outono havia chegado.
Sentada debaixo de um grande
carvalho, observava as pequenas montanhas que ainda guardavam o inverno
sublimes. Pensei que eram frias, sem vida. Mais lembrei-me dos animais e de
tudo o quanto precisava daquilo para sobreviverem, lembrei-me de um
documentário que vi uma vez, a “marcha dos pingüins”, como seres tão
inferiores, conseguem ser tão mais “humanos” que nós? Isto não importava,
tornei a observar a rua, pessoas passavam. Algumas sós, outras acompanhadas por
pessoas, animais. Um cachorro amarelo, grande, bonito e babão, veio até mim.
Lambeu-me a mão.
- Stock. Vem cá, deixe a moça em paz.
Disse um homem, alto, cabelo liso negro, com um belo sorriso. Era você. Como
aquilo era possível? Estava eu em um lugar da cidade. Longe de onde havíamos
nos encontrado da outra vez. Você se aproximou, segurou o cão pela coleira,
prendeu-o a corrente:
- Ora, ora quem está ai. A mocinha
sem fôlego. Então você sentou ao meu lado.
- Olá.
- Olá. O que faz por estas bandas?
- Apenas caminhando.
- A sim, sabe mesmo escolher os
lugares de acordo com as estações não é mesmo?
- Enfim devo ter aprendido alguma
coisa.
- João Vitor. Prazer.
- Suelem.
Não se você lembra mais nos olhamos,
por um longo tempo. E isto dizia tanto.
- Tua mãe não ralha contigo por ficar
perdida por ai?
- Quantos anos acha que tenho vovô?
- Quinze?
- Ora, tenho vinte e três.
- Sim, claro. Grande diferença.
- E o senhor vovô quantos ano tem?
- Bem mais que você.
- Não creio.
- É que sou conservadinho.
- Sei, vamos diga, não brinque.
- Trinta anos. Satisfeita?
- Com seus trinta anos? Acho que você
quem deveria estar. Sorriram os dois.
- Então Suelem estou indo, já está na
minha hora.
- Mais você nem me disse quando nos
encontraremos novamente.
- Por ai garota, por ai. Então você
se foi mais uma vez. Eu queria ter lhe impedido, mais não fui capaz, tive medo,
não sabia o que dizer. E a tormenta recomeçou.
Inverno
Eu já sabia que não podia te
esquecer, porém também sabia que não podia lhe ter. Nunca havia lhe dito nada a
respeito, nem sequer sei se você pensou nisto, no entanto, eu sabia dentro de
mim, que alguma coisa nos separava. Era algo grande e impossível de destruir.
Aquilo era inquietante, turbulento e assustador. Eu me levantava todos os dias
e observava a rua da janela do meu quarto. A neve caía como ao som de valsa, o
vento fazia contatos com as arvores, balançando-as em diversos sentidos.
Parecia querer-lhes arrancar. Eu resolvi abrir a janela para ver se tudo o
quanto eu estava sentindo também fosse com ela. O vento estava gelado e
penetrava fortemente sobre o quarto. Eu sentei sobre a janela, e senti todo o
rock in rol que a natureza expressava talvez os melhores tivessem tido sua
inspiração nisto.
Foi ali que permaneci mesmo com o
frio, a noite toda. O dia amanheceu a rua estava toda tomada pela neve, um
carro branco era confundido, todas as árvores estavam lisas e cheias de gelo.
Eu resolvi descer e andar. E foi o que eu fiz.
Quando cheguei à rua, todos a neve
ainda descia do céu, agora em compassos de samba, um lento toque, sereno. Duas
pessoas viam caminhando, falavam alto aos risos. Eu as olhei. E lá estava você,
perseguindo-me de novo. Tu me viste, encarou-me profundo nos olhos, abaixou a
cabeça, a moça que estava contigo entendeu algo, que só ela saberia explicar e
também baixou o olhar. Eu os observei até dobrarem a esquina, e sabe de uma
coisa meu caro, aprendi que tem coisas que temos que desaprender, eu não vou
mais gostar de você.
Final
Foi um ano de ti, e hoje escrevo-te
mesmo para que não leia, mais prometo a mim mesma, será a última vez que me
recordo de ti, meu impetuoso amor desconhecido.
2º lugar: ANDRÉ LIMA
BARROS, por “Adolf de tal”.
ADOLF
DE TAL
O
que mais me assusta na história de Hitler é saber que ele foi um ser humano de
carne e ossos como eu, como você, como todos da nossa raça são. Ele não veio de
outro planeta, não foi criado num laboratório e nem era um monstro alienígena
do tipo “filme-de-ficção-científica”. Ele nasceu de uma mulher que exerceu de
fato e de direito o papel de sua mãe. Ela o cuidou, o amamentou, o amou e, até
onde conta a história, lhe deu carinho. Ele também teve um pai, na verdadeira uma
família inteira, e ele foi, sim, um bebê fofinho e mimoso, inocente e sem
maldade nenhuma, como eu, como você e como todos da nossa ração também já foram. Isso é absolutamente apavorante!
Outra
questão que me incomoda é que ele nunca agiu sozinho - ele não era, nem de
longe, um exército de um homem só. Sempre teve aliados e nem todas aquelas
idéias terríveis saíram somente daquela cabeça perturbada e doentia. Ele era
seguido, amado, idolatrado, aconselhado e, infelizmente, obedecido por muitos,
mais muitos mesmo e, além disso (pasmem) ainda hoje alguns erguem
criminosamente aquela horripilante
bandeira nazista.
Todavia,
o maior e o mais desagradável desconforto que sinto em relação a esse assunto provém
da minha crença religiosa. Eu acredito que Hitler é meu irmão. Defendo que ele
é filho do mesmo Pai Celestial que eu creio ter. Ele veio para essa terra do
mesmo lugar de onde eu estava, pela mesma razão que eu vim, para alcançar o
mesmo objetivo pelo qual estou (ou deveria estar) lutando. E, caso você seja
ateu, do ponto de vista científico, biológico, matemático ou histórico, Hitler
também é, de alguma forma, seu parente, seu irmão. Em algum lugar da sua árvore
genealógica, querendo ou não, o nome Adolf Hitler vai aparecer (e o meu também),
acredite.
“Não
pode ser”, você deve estar pensando. “Será mesmo?” E eu entendo a sua reação, afinal,
estamos falando de um monstro, de um assassino, de um sanguinário, de um inegável
xenofóbico preconceituoso, obtuso e cruel que ... mas, só um instante, o que
aconteceu com aquele bebê fofinho e mimoso, inocente e sem maldade nenhuma?
Bem, a minha teoria é que em algum ponto de sua vida, por alguma razão que
desconheço, ele achou que ela, a sua vida, valia mais do que a vida dos
outros. Por exemplo, quando ele
suspeitou que sua comida poderia estar sendo envenenada por algum dos seus
tantos inimigos, ele logo tratou de providenciar quinze jovens alemãs que
provariam tudo que ele fosse consumir antes de ser a ele servido. Se alguma
daquelas jovens tivesse sido de fato envenenada (o que nunca aconteceu), e
tivesse agonizado, vomitado as tripas, esvaecido de sangue pela boca, ânus, olhos
e nariz, sentido lenta e torturantemente o seu esôfago e glândulas incharem e
seu corpo queimar como se um líquido ácido desintegrassem suas veias e órgãos
internos, até que a benção da morte lhe fosse finalmente concedida, tudo bem,
era somente uma jovem alemã caipira e desconhecida sem relevância nenhuma. No
entanto, ele não poderia passar por essa experiência. Ele tinha de ser preservado,
poupado, cuidado como uma jóia rara, pois, para ele e para todos os seus aliados
e seguidores, a vida de Adolf Hitler era muito valiosa e importante, muito mais
do que a vida daquelas jovens meninas, alias, do que a de qualquer um no
planeta.
Monstruoso,
não é? E é isso que me assusta. Essa monstruosidade toda pode também estar
dentro de mim! E, na verdade, respeitando as devidas proporções, está. Quantas
vezes eu considero os meus problemas mais graves e importantes do que os dos
outros? A minha dor sempre é mais doida, pior e mais forte. A minha pressa é
sempre mais legítima, mais justificável, tanto que eu posso ultrapassar
indevidamente o carro daquela “velhinha amarrada” ou cruzar o sinal vermelho
somente uma vez, somente hoje. A minha urgência é sempre mais urgente do que
urgência alheia. Entre mim e seja lá quem for (salvo aquelas cinco pessoas
pelas quais eu até morreria) ... eu sempre venho na frente, sempre tenho razão,
eu é que mereço, eu é que devo ser poupado, eu
... eu ... eu.
Felizmente,
nós, eu e caríssimo leitor, não temos o poder de Hitler. Ninguém nos segue, ninguém
nos obedece sem questionamentos e, supostamente, não temos a intenção de
dominar o mundo inteiro, deixando sobre ele apenas as raças que consideramos
puras. Mas, apenas hipoteticamente falando, se tivéssemos aquela mesma
autoridade, aquele mesmo poder, aquela mesma posição política e social, o que
faríamos? Como agiríamos? Quem seríamos? Alguém iria provar a nossa comida
antes de desfrutarmos das nossas refeições? Se sim, quem seriam as quinze
meninas alemãs caipiras e desconhecidas que iríamos escolher?
Que
medo de Hitler! Que medo da raça humana! Que medo de mim!!
3º lugar: LEANDRO
BARENHO OTTESEN, por “Gente estranha”.
Gente estranha
Estava olhando pela janela do ônibus
e uma senhora de idade subiu. Vinha com sacolas e uma bolsa de couro. Um garoto
levantou e insistiu para que ela aceitasse o lugar.
Começou a entrar mais gente do que
sair e o ônibus lotou. Pedidos de licença, com licença e desculpe iam
atravessando a multidão, seguidos de obrigadas. A bela moça de blusa azul
marinho desceu. Eu a acompanhei.
A senhora com as sacolas também
desceu, mas pela porta dianteira. Havia um mendigo na calçada, jornais e uma placa
que pedia esmolas. – Bom dia, Serginho. – disse a idosa, enquanto tirava um
saco marrom do meio das sacolas plásticas de supermercado. – Bom dia, dona
Isabel. – respondeu o indigente. Eu me encostei à parede do prédio e acendi um
cigarro. O homem barbudo agradeceu pelos pães e ofereceu um gole de uma garrafa
duvidosa à senhora. – Ah, não, meu filho. Eu não bebo. Obrigada e fique com
Deus.
Um cachorro vira-latas veio em minha
direção e o moço assobiou. O animal sentou à sua frente e ganhou metade de um
dos pães. Em duas mordidas, o manjar tinha acabado. Levantou-se e seguiu seu
caminho de cão-de-rua. E eu segui o meu.
Uma garçonete saiu do restaurante à
minha frente e me pediu o isqueiro. Comentou algo sobre o tempo, mas eu não
prestei atenção. Notei a barriga protuberante e o brilho da sua pele. Um homem
distinto em um paletó cinza saiu pela porta e entregou uma nota amarela.
Enquanto eu dobrava a esquina, ouvi – você não estava lá dentro, então, aqui
está a gorjeta.
Cheguei à porta do meu prédio e vi
um panfleto colado na parede “Encontrado cão da raça York Shire. Dono favor
entrar em contato pelo fone abaixo.”
Na porta do meu apartamento, o
síndico estava prostrado com um jornal às mãos. – Circulei alguns empregos que
possam te interessar e o meu primo tá precisando de um motorista. Anotei o
número dele aqui. – disse, entregando-me o jornal. – E também esquece os três
atrasados. Paga esse mês que ficamos quites. Boa tarde.
Entrei em casa, servi um copo de
uísque barato e liguei a televisão. A guerra ainda continuava. – É pra
pacificar o país! – diziam. – Pra roubar o petróleo! – diziam. Troquei de
canal. Um homem é preso por assassinar a filha grávida e o namorado... Um
homem-bomba mata vinte e duas pessoas em um parque. Desliguei a televisão.
Comecei a lembrar de tudo que vi
durante o dia. De todas as pessoas com quem encontrei. Que gente estranha!
Poemas
1º lugar: MANUELA
ALMEIDA DA SILVA SANTO, por “Poema das palavras caladas”.
Poema
das palavras caladas
Diz-me, então, palavras essas
que emergem do sentido oculto
escondido entre os lábios de uma boca
que não fala
entre os lóbulos de um ouvido
que não (h)ouve
diz-me e cala-te
só assim saberei do que falas.
2º lugar: EDUARDO
PORTO TEIXEIRA, por “Amor conjugado”.
Amor Conjugado
Eu amara, tu amavas..
Pra mim era mais que perfeito,
pra ti pretérito imperfeito
Se o teu tempo era diferente do meu
no infinitivo a gente iria compor
Mas a oração foi perdendo o sentido,
e o sujeito mudou sem pudor
Amar é verbo intransitivo,
escrito sem dor nem rancor
A oração não tinha sujeito
Do verbo sofrer virei professor
Querias me ter do teu jeito,
quisera eu ser teu amor
Mas ainda me perco na língua,
sem saber se é amor conjugado
Ao sentir o sabor dos teus lábios
conjugo esquecer bem errado
3º lugar: LILIAN DA
SILVA NEY por “Poema sem saída” e
LEANDRO BARENHO OTTESEN por "Minha pátria .
Poema sem saída
Que triste a tua sina
Empoeirando-se
Amarelando-se
Neste vão da estante
As traças divertem-se
Te sorvem com gosto
Mas de que adianta
Se não sabem ler
E tuas lágrimas
Esfarelam-se
Um trilho de dor
Levadas pelo vento
Do espanador.
Minha pátria
Pátria torta, torpe e tonta
Tanta obra atrás do tempo
Tanto homem ao relento
Muito falta pra estar pronta
Pátria minha, minha e nossa
Minha nossa! Quanta morte
Quanta vida sem um norte
Muita falta faz a roça
Pátria artista, triste e
tola
Qual futuro te espera?
Pois que mudes nesta era
Não te sejas tão à toa
Pátria rica, grande e linda
Linda pátria, vá à guerra
Menção honrosa poema:
PAULO ROBERTO OLMEDO DOS SANTOS “Manifesto”
Manifesto
Quereria eu fazer versos de amor
Mas a bomba atômica caiu sobre minha
cabeça matando milhares de iguais cabeças e outras bombas continuam a cair por
motivos tão importantes quanto
Quereria eu fazer versos de paz
Mas no jornal velado que vejo todo dia
principiam crianças mal nutridas e ignorantes estúpidos acenando para sua
própria desgraça enquanto bocas sorriem com dentes de ouro e indiferença
Quereria eu fazer versos bonitos
Mas o Romantismo é um tempo tão
passado deste meu tempo que até mesmo o próprio passado já foi questionado como
escritura
Quereria eu fazer rimas perfeitas
Mas Drummond ri da minha cara em
livros empoeirados que ninguém lê enquanto agonizo de incapacidade e
consciência
Quereria eu fazer versos de adoração
Mas se aproveitaram da minha inocência
pueril para incutir ideias que hoje renego muito por falta de vontade de crer
do que por acomodação de aceitar
Quereria eu fazer versos de amizade
Mas as conversas folgadas
transmutaram-se em cliques e perfis a serem atualizados diariamente para que a
mentira aparente ganhe força sobre a verdade disfarçada
Quereria eu fazer versos eternos
Mas o passado me impele combinado com
um presente fugaz de informacionalidade estúpida que renega o saber em troca do
parecer saber
Quereria eu gostar de poesia
Mas me enojo e regurgito por tantos
pseudos substantivos que nunca souberam do que se trata e pensam, talvez
ingenuamente, que rimar dor com amor é ser poeta
FILIPI VIEIRA AMORIM “Dor da
lucidez”
DOR
DA LUCIDEZ
Nada,
som
estridente do eco; reflexo
barulho
do espelho; vida
Tempo,
luz consumida
invólucro
de tudo; morte
alimento
da vida; sonho
Pena
de abrir os olhos,
dor
da realidade; fuga
consciente
devir; inconsciente
Inavegável,
mar
da opressão; tirania
eco
da morte; vida
Demência,
dor
da lucidez; consciência
nutriente da vida;
arte.
e LÚCIO CAROBIN MACHADO “Casulando”.
CASULANDO
Estou
cansado de andar dum lado ao outro
Feito
lagarta que quer se transformar
Quero
ser borboleta, e é pra já
Não
quero trabalhar, agir ou obrar
Para
assim me metamorfosear,
Num
casulo quero adentrar
E
lá ficar
Mais
de três anos a descansar
Até
parece fácil falar
E
praticar?
O
tempo tarda a passar
Eu
e você estamos a casular
Sem
dúvida, um futuro melhor há de chegar!
Não
tardou e o tempo nos encontrou
Olhou
dentro de nossos casulos
E
contou:
"o
futuro melhor chegou, mas por vocês passou,
os
casulos nem sequer notou.
Em
borboleta, não os transformou.
Não
trabalharam, agiram, obraram;
apenas
casularam e no tempo ficaram".
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