sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Textos ganhadores do Concurso Literário Universitário 2013



Contos
1º lugar: ANDRÉ LIMA BARROS, por “A súplica”.


A SÚPLICA

1995.
Entre o estrondo e a escuridão total foram apenas dois segundos. Ele ainda estava naquele estado em que não se sabe direito se aquilo tudo é apenas parte de um sonho, de um pesadelo, ou se realmente esta acontecendo. A sua consciência começou a voltar lentamente à medida que as pessoas aglomeradas à sua volta começaram a falar indistintamente. Ele estava atirado no chão, disso tinha certeza. Do resto, nada fazia sentido. Os sons eram desuniformes, as palavras, os gritos não tinham nexo, tudo era desconhecido, estranho e desfocado. Ele fez um grande esforço para se erguer do solo, mas fora inútil. O desespero então começou a se apoderar dos seus pensamentos. Ele precisava saber onde estava, o que tinha lhe acontecido, o que estava acontecendo.
Repentinamente, sentiu uma dor descomunal. Que dor horrível! De onde vinha? O que estava doendo tanto? Ele não conseguia identificar. Talvez o estômago. Não, era na cabeça ou na perna? Também não, era no corpo todo. Tudo doía tremendamente. Foi então que percebeu que estava contorcido no meio da rua, todo quebrado, imóvel, com dezenas de pessoas a sua volta. E só então ele lembrou: o ônibus em alta velocidade...  a pressa... o compromisso... o outro lado da avenida... achou que dava tempo... correu... a pressa... olhou para o lado... o compromisso... o estrondo... a pressa... a escuridão.
A dor começava a ficar insuportável, mas sua voz já conseguia sair. Seus olhos estavam empapados de sangue, e ele gemia, gritava. As pessoas à sua volta contemplavam a cena com um pavor explícito. Ele, impotente, limitado, implorava por socorro. Estava morrendo. Podia sentir o calor e a viscosidade do seu próprio sangue escorrendo pelas suas costas. As suas pernas dilaceradas e retorcidas sobre o asfalto molhado de garoa estavam presas ao seu corpo apenas pelas suas carnes mais externas. A sua cabeça ardia e parecia que iria explodir a qualquer momento. Seus órgãos internos estavam completamente destruídos, liquefeitos, desmanchados ... em segundos estaria morto. Ele podia ver isso na expressão angustiante das pessoas que o rodeavam. Não estavam olhando para um homem ferido no chão, mas para um corpo quase sem vida, estraçalhado, agonizante, fazendo um esforço alucinante para respirar pelo menos mais uma única vez.

Sérgio se agachou ao lado do homem espedaçado, pegou sua mão ensanguentada e disse que a ambulância já tinha sido chamada e chegaria ao local o mais rapidamente possível. Os dois sabiam, no entanto, que ele não resistiria. Antes mesmo que as sirenes pudessem ser ouvidas ao longe, ele já estaria morto, isso era um fato. Contudo, o jovem advogado continuou segurando a mão do moribundo, assegurando-lhe de que tudo acabaria bem. Uma senhora falou ao longe para não tocar no sangue do ferido, poderia ser perigoso. Sérgio não lhe deu a menor atenção, até porque o homem também estava usando terno e gravata. Não era um mendigo certamente e não lhe parecia alguém sem instrução, exceto pela barba mal feita. Provavelmente se tratava de outro advogado, ou um executivo, correndo pelas ruas movimentadas da cidade, tentando ganhar a vida cada vez mais difícil para todo mundo. Poderia ser ele atirado ali no chão, pensou. E se fosse ele, iria querer que alguém lhe nutrisse com esperanças, mesmo que da mais falsa espécie.

O homem apertou-lhe a mão com força. Era chegada a hora. Iria morrer e estava sendo bem como ele sempre havia suposto. Seu corpo ficou dormente, seus olhos e seus braços começaram a pesar, um sono incontrolável tomou conta de seu discernimento e o ar entrava com dificuldades nos pulmões. Sérgio retribuiu o apertão, sabendo que quando aquela a pressão fosse aliviada, era sinal de que o coitado estaria morto. O homem olhou profundamente em seus olhos, encheu os pulmões com um volume gigantesco de ar, apertou-lhe as juntas dos dedos com mais força e falou suas últimas palavras nesta terra: “cuide do meu filho”.

2013.
Era a festa de aniversário de dezoito anos de Paulinho. Sérgio e Marilda não acreditavam como o tempo tinha passado tão rápido. Tanto coisa tinha acontecido, mudado. Ele, agora finalmente chefe do departamento jurídico da fábrica, podia dar ao único e tão esperado filho, uma comemoração sem precedentes. Marilda, radiante pela recente promoção do marido e também pelo aniversário do filho, fez todos os preparativos da festa com muito cuidado e extremo carinho. Tudo do bom e do melhor.

A cada ano que passava, os motivos para uma comemoração mais adequada só aumentavam. A carreira de Sérgio cada vez mais promissora e, mais importante do que todo resto, só os dois sabiam como aquele menino era importante para eles. Depois da sua chegada, suas vidas foram agraciadas com um sentido extraordinário. Marilda sempre sonhou com uma família grande, no mínimo três filhos, e Sérgio também, desde rapaz, nutria uma latente vontade por ser pai. A demora na gravidez de Marilda fez com que os dois ficassem apreensivos, quase desesperados. Mas, Paulinho já estava fazendo dezoito anos e isso é que importava. O tempo voa, a vida continua e só é dura para os que são moles. Esse era o lema que Sérgio não fazia cerimônia em compartilhar com quem quer que fosse, onde quer que fosse.

Paulo era um menino estudioso, companheiro, carinhoso e dava muito menos trabalho do que a maioria dos seus amigos e colegas, os quais foram em peso à sua festa. Já estava no segundo ano de Engenharia Mecânica e o namoro com Fernanda parecia estar se afirmando cada vez mais e indo às mil maravilhas. Não faltavam motivos para comemoração. E a comilança fazia jus à ocasião - era farta. Salgadinhos, docinhos, refrigerante, bolo de três camadas, tudo que um bom aniversário deve ter e oferecer aos seus convidados. Além da música alta, brincadeiras, animadores, garçons, um luxo total.

1995.
A ambulância chegou. Os paramédicos agiram o mais rápido que puderam, mas o homem já estava morto. Sérgio acompanhou o defunto até o hospital. Aquelas últimas palavras tinham penetrado na sua alma: “cuide do meu filho”. O som de cada um dos quatro vocábulos ficava retumbando na sua cabeça. Ele não podia simplesmente continuar a vida e fingir que aquilo não havia acontecido. Ele precisava saber quem era aquele homem e de que filho ele estava falando. Não foi nada difícil descobrir.

Luis Ferreira Martins. Trinta e quatro anos, auxiliar de serviços gerais do Colégio São José Operário, viúvo, alcoólatra, ex-presidiário por porte ilegal de arma de fogo e tráfico de drogas e pai biológico de Paulo da Silva Martins, de sete meses, o qual estava sob custódia do Estado no Orfanato Casa dos Meninos desde a morte da mãe. Sérgio também descobriu que Luiz, quando foi atropelado, estava indo a uma audiência no Foro da cidade, para saber do juiz se poderia ou não ficar com a guarda de seu filho.

Ele não resistiu e foi conhecer a criança no orfanato. Foi amor à primeira vista. Desde o casamento, Marilda tentava engravidar, mas nada. Ele tinha certeza que o problema era com ela, mas nunca exigiu que a esposa fizesse qualquer tipo de exame. Ela poderia se ofender e ele a amava demais para causar-lhe tal desagrado. Adotar Paulinho seria a solução perfeita. Além de realizar o último pedido daquele homem que morreu da mesma forma que viveu, pateticamente, ele poderia realizar o seu próprio sonho de ser pai. Mas essa era uma decisão que ele não poderia tomar sozinho. Precisaria consultar Marilda antes de levar seu plano adiante.

2013.
Depois de render todos na casa com uma pistola automática, ele os trancou no suíte do casal. Ninguém sabia o que estava acontecendo. A festa já havia acabado e, além de Sérgio, Marilda, Paulinho e Fernanda, só dois amigos ainda estavam no local. Até os garçons e o pessoal do buffet já tinham sido dispensados há mais de meia hora. Quem era aquele garoto maluco e o que ele queria? De dentro do quarto, só se escutava o barulho de seus passos agitados, de um lado para o outro. Ele estava roubando tudo que podia e destruindo o resto. A cada objeto colocado na bolsa, ele calculava quanto aquilo valeria em pedra ou erva.

A sua primeira intenção era assaltar a loja de conveniência do posto de gasolina, curtir a noite e ser preso novamente no dia seguinte. Após a sua fuga, em que matou um guarda do presídio depois de roubar-lhe a pistola, todos os policiais da cidade já deveriam estar com uma foto dele nas mãos e, voltar para a cadeia era apenas questão de horas. Ele precisava aproveitar. No entanto, quando estava se preparando para anunciar o roubo, aquele homem sorridente entrou na loja e foi cumprimentando a todos com uma alegria contagiante, irritante, que fez com que ele mudasse de ideia. O operador do caixa, o frentista e dois outros clientes o conheciam pelo nome: Sérgio. E era notório que tratava-se de uma pessoa queridíssima por todos. O frentista até entrou na loja apenas para parabenizá-lo pelo aniversário do filho. E ele, sempre muito simpático, atencioso e comunicativo - era de uma educação impressionante - agradeceu a gentileza efusivamente Pediu dois sacos de gelo, pagou com dinheiro vivo, se despediu de todos, disse o seu famoso bordão sobre a vida e saiu a pé, caminhando tão levemente como se estivesse passeando sobre nuvens brancas sorridentes. “Gente boa esse Seu Sérgio, hein?”, comentou um dos clientes. Todos concordaram e ainda teceram outros tantos rasgados elogios ao advogado, dentre os quais um que informou, sem querer, que ele morava naquele casarão dobrando a esquina, bem no meio da quadra. O jovem delinqüente comprou um pacote de bala de goma e saiu pesadamente como se carregasse o mundo nos ombros, em direção ao seu novo destino.

Ele esperou do outro lado da rua até todos os convidados saírem. Já era quase três da manhã quando o último carro que estava estacionado na frente da casa foi embora. Ele então saiu de trás da árvore, atravessou a rua, abriu o portão e anunciou o assalto. Roubar aquele homem em sua própria casa, não era somente uma forma de conseguir moeda de troca para sustentar os seus vícios por narcóticos pesados, mas uma maneira de se vingar da sociedade, da vida, do sistema, de tudo, de todos. Por que ele também não podia ter uma casa daquelas, com uma família igual aquela, que lhe oferecesse um aniversário como aquele? Que tipo de vida poderia levar uma pessoa para sentir-se tão alegre ao ponto de cumprimentar daquela exagerada forma um simples operador de caixa da loja de conveniência do posto de gasolina? E quem afinal ele pensava que era para ficar espalhando aos quatro ventos que a “vida é dura para quem é mole”? A vida é dura para quem ela quer ser dura. Se ele nunca tinha sido mole, muito pelo contrário, então por que a vida tinha sido tão dura com ele?

O que o jovem ladrão percebeu que não iria conseguir carregar, ele quebrou, destruiu. A televisão, o microondas, o exaustor de ar em cima do fogão elétrico, o próprio fogão, tudo. Ele vandalizou a casa inteira, com uma raiva diabólica. Sérgio e os outros escutavam tudo do quarto e estavam cada vez mais apavorados. O bandido recolheu os celulares e, antes de trancar a porta, certificou-se de que não havia nenhum telefone nem computador na peça. Eles estavam isolados do mundo, esperando apenas que o rapaz roubasse tudo que quisesse e fosse embora logo. Mas isso não aconteceu. Ele abriu a porta do quarto, apontou a pistola para a cabeça de Sérgio e começou a perguntar pelo cofre. Ele engatilhou a pistola de uma forma tão agressiva e ameaçadora que Paulinho, num impulso impensado, gritou e correu desabaladamente em auxílio de seu pai.

1995.
Sérgio chegou em casa com os papeis da adoção na mão e encontrou Marilda também com papeis na mão. Eram os exames do laboratório. Ela finalmente tinha engravidado. A comemoração foi com risos, choros, gritos de euforia e emoção. Era hora de ser plenamente felizes. O promissor advogado nunca chegou a contar para sua esposa a sua intenção de adotar uma criança. Ela poderia achar muito ofensivo de sua parte e ele a amava demais para causar-lhe tal desagravo, principalmente agora que ela lhe daria um herdeiro.

Paulo - nome escolhido em homenagem ao menino que nunca adotou - nasceu com saúde e foi tratado como um príncipe desde o primeiro dia de vida. Os dois não pouparam esforços para dar-lhe de tudo do melhor, assim como amor, carinho e altíssimos valores morais.

2013.
Paulão, depois de atirar em Paulinho, encarou Sérgio e pensou em estourar seus miolos ali mesmo. O desesperado pai, só então reconheceu aquele olhar, aqueles olhos. O marginal, ao escutar o barulho de sirenes, virou as costas e saiu correndo, sem levar nada do que tinha colocado na bolsa.
Marilda chorava sobre o corpo do filho. Fernanda desmaiou e os amigos do rapaz estavam em choque. A polícia chegou ao local e Paulinho ainda estava respirando, mas completamente inconsciente e com o peito todo ensangüentado.

No hospital, um delegado informou que o criminoso já tinha sido capturado e que era um fugitivo da prisão com uma ficha criminal quilométrica. Órfão de pai e mãe, viciado, traficante, o rapaz tinha sido criado num orfanato do qual saiu direto para a cadeia por agredir quase até a morte a diretora da instituição. Paulo da Silva Martins, 19 anos, mais conhecido como Paulão entre os amigos do crime, filho de uma empregada doméstica, Maria da Silva, que morreu ao lhe dar a luz, e de um auxiliar de serviços gerais e ex-presidiário, Luis Ferreira Martins, o qual tinha morrido por atropelamento em via pública quando o filho ainda era um bebê.

O médico, depois de exatos trinta e dois minutos, chegou à sala de espera para dar notícias sobre o estado do garoto. Era gravíssimo e ele teria que sofrer uma cirurgia muito perigosa e delicada imediatamente. Todos choravam, mas ninguém sentia o que Sérgio estava sentindo. Ele sabia que não tinha apertado aquele gatilho com a arma apontada para o seu filho, mas se sentia tão intensamente culpado como nem o próprio rapaz que tinha atirado deveria estar se sentindo. Ele agarrou o braço do médico tão fortemente quanto Luis tinha agarrado a sua mão naquela tarde chuvosa de 1995, olhou bem no fundo dos seus olhos e implorou com a alma estraçalhada de remorso: “cuide do meu filho”.

 


2º lugar: CRISTIANO ARAÚJO VANIEL, por “Desabafo”.


Desabafo

Porto Alegre, 22 de março de 2005.       

Oi.
A situação está insustentável.
Minha vida mudou radicalmente desde que comprei este apartamento aqui na zona sul, perto do Guaíba. O problema não é a minha nova residência e sim os fatos que ocorreram dentro dela. Estou morando aqui desde o início do mês e a partir disto aconteceram muitas reviravoltas.
Primeiro: no segundo dia na nova moradia, que por sinal é muito aconchegante, a Margarete flagrou-me na cama com a melhor amiga dela. A discussão foi terrível, digno de cena apoteótica de telenovela. Lágrimas, chiliques, tapas, ameaças e cacos de vidro e porcelana por todo o canto.
Segundo: no quinto dia, ela aparece para pegar o resto de suas coisas e traz, como acessório, seu advogado (primeiro lugar no campeonato mundial de filhodaputice) para discutir a papelada do divórcio. Não optei por ter um advogado. Você sabe bem que apesar de ser formado em Direito, não quis exercer a profissão. Entrei na faculdade de Medicina e escolhi ajudar as pessoas trabalhando em hospitais. Eu me represento perante o juiz, portanto. A conversa foi longa, extenuante e extremamente desconfortável – te juro que tive vontade de matar os dois durante toda a cena.
Terceiro: no oitavo dia, o marido da Suzana, ex-melhor amiga da Margarete, apareceu com ela no meu apartamento para brigar comigo. Ele quis ficar conversando para me pegar desprevenido, veio com aquela fala mansa, mas os hematomas na Suzana eram evidentes. Parti direto para a porrada. Ganhei um olho roxo, dois hematomas na região lombar e injeções dose jumbo de adrenalina no corpo com toda aquela situação. Ele ganhou um belo inchaço no olho esquerdo, três dedos da mão quebrados, e, acho eu, no mínimo três costelas trincadas. Dias depois encontrei alguns dentes dele no meu carpete importado da Itália.
Quarto: no décimo primeiro dia, Gilberto, meu melhor amigo, apareceu com três mulheres bem jovens e muitas bebidas numa sacola de viagem. Fazia muito tempo que eu não fazia festinhas deste tipo - considerando que eu era casado há 24 anos com Margarete. As garotas eram bem joviais e dispostas a todo tipo de sacanagem. Pela primeira vez cheirei cocaína. A maconha já faz parte da minha rotina desde os tempos da faculdade – inclusive, você já fumou comigo. Acordei com as três nuas no chão da minha ampla sala de estar. Gilberto teve que sair mais cedo, pois tinha plantão na delegacia.
Quinto: no décimo sétimo dia, eu havia mandado pintar novamente a fachada de minha sacada, pois estes pichadores de merda sempre escrevem algo ali com suas tintas. Meu apartamento fica no segundo andar e depois do sétimo dia, quando apareceram pela primeira vez estes rabiscos, percebi que a portaria não tinha como ver quando estes desocupados aparecem para danificar o condomínio. Na minha concepção, os vigilantes do turno da noite têm medo desta gangue porque, suponho, eles devem fazer parte de uma quadrilha, ou algo assim. Nem os policiais que o Gilberto designou resolvem este problema. Eu mando pintar e eles, sempre na noite seguinte, estragam tudo novamente.
Estou cansado. Acho que estou depressivo. Talvez apenas desesperado e sem condições de suportar tal situação: divórcio, brigas, putaria e esses bostas que picham meu apartamento. Meu lar. Meu adorado lar. Será que este lugar é amaldiçoado? Ou será que esta é a minha sina, meu destino?
Não consigo encontrar resposta. Para nada.
Agora estou no vigésimo segundo dia aqui. Ontem mandei pintar a sacada. Detesto verde claro, mas é a cor principal do prédio. De acordo com o modus operandi, eles devem pichar hoje.
É quase uma da manhã.
Todas as peças do meu apartamento estão com as lâmpadas desligadas. As janelas estão fechadas. Nada está ligado, nem televisão ou rádio. Estou sentado no chão do meu quarto, de pijama listrado vermelho com branco. Minhas costas estão encostadas na parede logo abaixo da janela. Pela posição estou de frente para a minha cama e se ficar de pé,  posso girar e olhar o que está ocorrendo na rua e, se eu quiser, virar um pouco minha cabeça para a direita e apreciar uma visão ampla da minha sacada. Basta recolher a persiana que impede a visão. Mas continuo sentado. Olho para a minha cama com edredom amarelo estendido. E tento fixar o olhar para o que está abaixo da cama. Sei que é uma grande bolsa preta, entretanto queria dar mais uma olhada nela.
Enquanto desfruto da escuridão, do silêncio, penso novamente se esta é uma decisão desesperada, se é um ato de revolta contra tudo que está acontecendo. Será que fiquei simplesmente louco? Como tanta gente acredita em Deus? Será que um cristão, diante de toda esta situação, ainda teria a sua fé? Não sei. Nunca tive fé, acho que não sou a pessoa mais apropriada para ter uma opinião sobre isto. Até porque, algum cristão pode ler esta carta e rasgá-la antes de entregar para você. Tudo bem, eu sei que esta não é a melhor carta para se mandar ou para se receber. É uma pena, mas não tenho forças para suportar tudo. Eu sei disso. Eu sei que não vou conseguir combater, nem encarar. Sou um fraco. Não consegui manter um casamento estável, nem resistir aos encantos maliciosos de uma vagabunda mal comida. Desde aquela festinha que o Gilberto promoveu aqui, cheiro pó todo dia, pelo menos quatro vezes ao dia. Tem um prato de sopa no criado-mudo ao lado da minha cama com duas carreiras de cocaína. Ainda não é o momento certo de aspirá-las.
Agora é quase três da manhã.
Tive uma crise medonha de choro depois do penúltimo parágrafo. Consegui me controlar agora.
Você lembra quando nos conhecemos no colégio? Acho que foi na sétima série. Você sempre sentava a minha frente. Sempre tirávamos as melhores notas. No meio do ano, ganhei meio ponto a mais que você na prova e então no outro dia virou-se para mim e perguntou o que achei da prova. História ou geografia? Disso não consigo lembrar. Desde então andávamos sempre juntos. Estudamos juntos no ensino médio e você até quis fazer Direito comigo, mas seus pais lhe forçaram a estudar Medicina. Ainda lembro quando você me ligou e disse que largou o curso no meio e optou por Veterinária. Nós nos encontramos naquele restaurante, lembra? Ali foi o nosso primeiro e único beijo.
Que droga! Mais lágrimas.
Espere.
Eles estão no primeiro andar e estão em três. Três marginais.
            ...
Acabei de cheirar as duas carreiras de pó. Apanhei a bolsa preta que estava debaixo da cama. Acabei de abrir e há várias peças, aparentemente, sem função nenhuma. Opa! Acho que já alcançaram minha sacada. Montei agora as peças e resultou em um belo fuzil de assalto. Confiro dentro da bolsa uma pistola prateada bem grande. Fui pra janela e espertamente não baixei o vidro. Apenas a cortina persiana está bloqueando a pequena entrada. Engatilhei a arma e apontei-a para os dois garotos que neste momento estão pichando a sacada. Mirei na cabeça do maior. Puxa vida, são moleques.
O primeiro tiro derrubou o garoto. A cara do outro ficou espirrada em sangue, cérebro e pedaços do crânio. O estardalhaço foi grande. O marginal que está lá embaixo saiu correndo. O outro que está na sacada está paralisado. Deve ser o choque. Mais um tiro e mais um cadáver na minha sacada. Procurei o outro pichador, mas ele está muito longe. Será que consigo acertá-lo. A resposta veio com mais um tiro, mais um trovão e mais um corpo para o Instituto Médico Legal. Voltei-me para o quarto. Apanhei a pistola. Termino a carta agora.
Cuida bem da Fernanda.
Nunca esqueça que sempre te amei e que se voltasse no tempo, diria não para o padre. Sei que já disse isto antes e você nunca acreditou, mas "água mole em pedra dura tanto bate até que fura".
Amo-te.
 


3º lugar: JEAN LUCCA DE OLIVEIRA BECKER, por “Uma ficção para que não se esqueça...”



Uma ficção para que não se esqueça...


“As cicatrizes do corpo, ou do espírito, assinalam com rigorosa precisão e implacável memória onde estiveram as feridas.” (Mario Benedetti)


Essa história, leitor, ela é uma ficção. Nunca existiu. Até mesmo seus personagens são inventados, seus nomes são esdrúxulos. Quanto ao que aconteceu... Bem, qualquer afirmação, neste caso, seria arriscada demais.
Uma história leva bastante tempo para acontecer, mas ela pode ser contada em duas, três páginas. No entanto, nenhuma delas é capaz de esboçar uma verdade, porque a verdade sequer existe e, em nome dela, cometem-se atrocidades. A minha verdade é pacífica, ela teima em dizer que essa história é de mentirinha. Ela desrespeita escancaradamente a cronologia e, mais que isso, ela desrespeita a temporalidade. É algo ocorrido por volta dos anos 60 ou 70. Não sei bem, é ficção.
Pois bem, esta é a história de dois irmãos: Individuel e Esquecinilda. Era primavera, sim, acabo de decidir que era uma bela manhã primaveril. Individuel acorda de sobressalto e, por um momento, suspira, pensando que tudo não havia passado de um pesadelo. Mas não. Devia levantar-se e levar uma flor ao túmulo da irmã.
Vinte anos... Vinte impassáveis anos desde a trágica notícia do assassinato da irmã, e o pior: notícia impalpável, uma vez que o corpo jamais aparecera. Estariam os restos mortais de Esquecinilda esquecidos por aí? Pode ser, mas sua memória não. Enquanto esteve no cárcere, Esquecinilda escreveu tudo o que viveu.
Preciso fazer uma pausa, leitor, e pedir que lembre que essa história nunca existiu; que um irmão não teve que enterrar simbolicamente sua irmã porque seu corpo nunca fora encontrado. Não. É só ficção, eu já disse. Esse tipo de coisa doeria muito se fosse real...

“- Que saudade dos amigos que longe daqui estão!
Dos que, em razão dos perigos, estão bem perto do Japão...
Onde está a dignidade nessa falta de humanidade?
É a estatal impunidade que nos toma a liberdade.
Às margens do Nilo, o íbis representa a sabedoria;
Às margens do Prata, o condor retrata a selvageria!”

Impossível esquecer a polícia chegando, o desespero dos companheiros, o cheiro do uísque exalando da garrafa que caía, enquanto os capturavam. A memória é implacável: se você pensa demais em uma coisa, você fecha os olhos para esquecer e é aí que as coisas vêm. Individuel, Esquecinilda e outros foram levados a mando do General Torturaldo. Poucos escaparam. Tiveram que correr como nunca.
Em nome da manutenção de uma ordem política, de uma segurança nacionalque torturava os seus nacionais (com o perdão da sonora redundância), os irmãos foram trancados, despidos de todo direito – bem como de suas roupas e de sua dignidade – e maltratados da maneira mais rebuscada. Foram abusados de uma maneira que aterrorizaria todas as noites de quem testemunhasse. Tiveram sua intimidade violada de modo brutal, como se a violação fizesse parte da ordem normal das coisas. Em suma, a completa vida nua, aquecida por sociedade fria e crua.

“- Mui difícil é contabilizar, mesmo quantificar tal sofrimento;
Impossível relembrar, quanto mais imaginar tamanho tormento...
Dores indizíveis, gritos de horror que ecoam cada vez mais:
Cem ‘Meu Deus’, oitenta ‘Nãos’, quarenta ‘Me ajudem’, cinco ‘AIs’...”

Respeito, diálogo... Palavras que foram arrancadas do dicionário, rasgadas como se fossem desnecessárias. As dores, elas não passam, quando são na alma. A dor física é horrível, mas ela é o de menos se você comparar.
Esquecinilda narra seus dias. Quer desesperadamente que alguém a leia, que alguém grite por ela, porque ela mesma já não tem forças. Um dia recebe, clandestinamente, uma carta. São os amigos, companheiros militantes, agora exilados na Inglaterra. São livres! – ela pensa.

“- Só porque o céu está nublado o sol não deixou de brilhar
Por mais que escura nuvem o tente acobertar.
Onde o sol da liberdade algum dia já raiou
Densa treva não prospera, embora pense que triunfou...”

Na escuridão, seu corpo foi abandonado. Nas paredes daquela pequena sala, nomes foram escritos, lamentos deixados. Naquele pedaço de inferno até os ratos eram mais dignos de existir. A única lei que imperava era a da força. E como precisava de força para resistir à dor que ultrapassava os limites do corpo, a extensão da pele...
Ela passa a responder as cartas. Até que é descoberta e o castigo é (ainda mais) reforçado, afinal, a subversiva estava tramando. Impossível resistir, e a morte chega – e ela não era exatamente uma senhora de capa preta como muitos a descrevem. Ela chega no momento em que o corpo de Esquecinilda está no auge da deplorabilidade, que sua mente não consegue mais responder a nada. A morte chega com um sorriso e um murmuro: Livre de novo!
Leitor, não se deixe levar pelo que lê. Esta é pura criação da fantasia humana. Ninguém nunca foi levado de sua casa, nem foi torturado ou violado, ou simples e educadamente convidado a mudar suas convicções. Não se engane, meu leitor: toda escrita é uma ficção. Todo suplício é mera criatividade da mente de quem vos fala.
Na noite em que aconteceu aquela fatídica reunião, os companheiros estavam otimistas. Apesar do cerco iminente, sentiam-se unidos, estavam fortalecidos. Eram a oposição e a eram com orgulho. Sob clima menos tenso que o costumaz nas reuniões daqueles “subversivos”, eram acertados os próximos passos, eram discutidos os avanços, sobretudo na cultura e na arte (que tanto revelou sem dizer). Era o momento da descontração. Então, os homens do General Torturaldo bateram à porta (belo eufemismo).
E, finalmente, chegamos ao começo da história.
Individuel e Esquecinilda estão em casa. Ele lendo o jornal e balançando a cabeça como quem estivesse lendo disparates; ela tomando um bom banho. De repente, Esquecinilda lembra: – A comida. Deixei a comida no fogo! O irmão corre para a cozinha e vê que, das panelas, nada se aproveita. Enquanto a irmã termina de se vestir, o irmão sai para buscar algo para o almoço e pensa: - Esquecinilda, esquecida como sempre! Minutos depois, ao ver o irmão entrar com um único prato de comida, a irmã pensa: - Individuel, individualista como nunca!
Mal sabiam eles que, no fim (que foi o começo dessa história), Esquecinilda jamais seria esquecida e, Individuel, jamais um individualista. As cartas! O testemunho. Eles estavam vivos nas palavras. As cartas seriam a voz de quem já não poderia mais contar os horrores que sofreu. As cartas de Esquecinilda que foram entregues ao irmão e ele foi o elo delas com o mundo.
Individuel passou a buscar os testemunhos dos demais amigos, juntou-os e os mostrou ao mundo, que, já nos anos 90, não conseguia acreditar. Quem não sentiu, ou não viveu os horrores narrados nesta história, sempre vai preferir pensar que o testemunho é ficção. Mas ele não é. E é para que não se esqueça...
 


Menção honrosa conto:
MANUELA ALMEIDA DA SILVA SANTO “Do lado de dentro do bolso”.


Do lado de dentro do bolso
Antes de sair de casa, ao colocar a mão na maçaneta, reparou a falta das chaves. Investigou por entre os cômodos, por entre as almofadas, sobre as prateleiras, embaixo da mesa. Pediu licença às plantas, examinou por debaixo dos vasos e apalpou-lhes a terra. Sabia que as tinha visto em algum lugar, mas esse lugar não tinha nome e nem proximidades. Reconstruiu mentalmente todo seu trajeto até o momento presente e nada obteve além de o impedimento de sair de casa. Quanto mais procuro os objetos, mais ocultos eles se tornam, pensou.
É como se fossem objetos perversos, famintos por uma angústia persistente e avassaladora. Objetos que ficam escondidos, em frestas de armários, portas e janelas, na espreita impiedosa do desespero alheio. Ficam a observar, silenciosos e invisíveis, a quebra da onipotência – imaginária -  que o ser humano carrega consigo. Pois é esse mesmo sujeito que, agora, não consegue sair de casa sem as suas chaves. E não conseguiria comer sua comida sem os seus talheres – ou sequer andaria por aí sem os seus sapatos. O homem é um súdito de suas criações. Vive para produzir e vive para o que produz.
O que aquele homem sem as chaves não sabia, é que, naquele momento, não só as chaves, como também o sofá, o travesseiro, a mesa de centro, os fósforos, o controle...todos, absolutamente todos estavam divertindo-se às suas custas. O homem, que passara a madrugada anterior terminando seus projetos, relatórios e trabalhos, tal como um homem sério e respeitado nesse mundo dos humanos, era, agora, motivo de piada entre os seus pertences. Havia entre eles gargalhadas invisíveis, claro, porém profundas. Elas continham, sobretudo, um fundo de verdade: eram uma tentativa (vã) de propagar alguns ensinamentos. As gargalhadas funcionavam como aquela professora carrasca de matemática que, no fim do ano, é a que consegue o melhor desempenho de seus alunos -  e ainda é presenteada. O soar dessas risadas formavam frases como  “aprenda a viver sem mim e eu lhe ajudarei a viver melhor”. Era uma troca justa, mas unilateral.
O homem, alheio a isso tudo, começava a angustiar-se mais a cada minuto que passava. Sabia que as chaves não tinham vida própria e sequer possuíam alguma capacidade locomotiva, mas, definitivamente, não fazia mais idéia do lugar em que as havia deixado. Resolveu, então, pegar o celular para fazer ligações. Precisava ligar para o chaveiro e pedir a sua ajuda, avisar o seu chefe que se atrasaria para a reunião e ligar para aquela empresa pra avisar que as mercadorias não chegariam a tempo. O celular, entretanto, estava sem sinal. Ele não sairia de casa e sequer conseguiria avisar o motivo da sua ausência. O desespero dominou-o nesse momento a tal ponto que resolveu sentar-se. Sim, sentar-se. Decidiu que o sofá seria, nesse momento, o seu aliado. Debater-se por soluções acarretaria só no seu desgaste físico e emocional. Esforçou-se para pensar o que um homem sério e racional faria nesse momento. Queria agir com seriedade mesmo em uma situação trivial. Não arriscaria perder a sua honra num momento tão patético como esse. O sofá, por sua vez, calou-se. Engoliu o riso em sinal de respeito, mas sabia com toda a sua convicção que patética mesmo era a inabilidade daquele homem em lidar com imprevistos. Cutucou o abajur  para mostrar-lhe como a seriedade humana era vazia e cômica, pois quanto mais o homem intensificava o seu  raciocínio em busca da chave perdida, mais distante se tornava dela.
Era um só sujeito que dependia de um molho com inúmeras chaves. A chave que abria o carro, que abria a grade, que abria a porta, que abria o escritório, que abria o armário, que abria o cofre. Um homem repleto de fechaduras, mas que não conseguia entrar em si mesmo – e isso já não era mais uma piada. Sabia trabalhar, realizar enormes cálculos matemáticos, fazer transações multinacionais, mas não sabia se comunicar com ele próprio. E mais: mesmo que tentasse só conseguiria ouvir um eco, como se estivesse ilhado em si mesmo. Era, sobretudo, um alguém que abria portas, mas não sabia, definitivamente, abrir o coração.
Os objetos resolveram, então, parar com a pirraça e a substituíram pela piedade que sentiam naquele momento. Eles eram generosos com a desgraça alheia e optaram por respeitar esse momento de extrema fraqueza. Viram ali, na sua frente, um homem sério que perdera o controle da situação pela simples ausência de um molho de chaves. “Ele pelo menos tinha controle sobre nós”, uma delas falou. E agora nem isso tem mais. O imprevisível se sobrepunha à sua rotina marcada a passo e descontruía o ritual sistemático que ele se submete, dia após dia,  para ser um homem-sério-de-juízo.
Passados alguns minutos, as chaves resolveram encerrar de vez com a brincadeira. Elas chamaram  todos os pertences da casa e avisaram que chegara o momento de parar com o esconde-esconde. Alguns reclamaram, outros reivindicaram, mas elas estavam firmes em seus propósitos. Justificaram dizendo que o homem não tinha ninguém junto dele – nem ele mesmo – e que era o dever delas lhe fazer companhia. Logo após, pediram silêncio e se sacudiram efusivamente de forma que pudessem chamar a atenção do homem. Ele, surpreso, apalpou os bolsos e encontrou-as bem ali, de onde nunca haviam saído. Porém, antes que pudesse rir de si mesmo por tamanha distração, correu para o quarto para pegar a sua maleta e saiu pela porta como um vulto. E lá se foram as chaves abrir a grade, o carro, a porta do escritório, as gavetas... E o sujeito? Continuou sendo um homem sério e de respeito – mas que ainda não sabia enfrentar imprevistos.


 ÉVELLIN KEITH DA COLLINA  “O calabouço da montanha”.

O calabouço da montanha.

Era uma vez, uma velejadora. Ela tinha o coração muito puro, o que facilitava sua compreensão sobre o mundo que a cercava.

Ela velejava pois gostava do mar e de sentir a dinâmica dos ventos, ondas e correntes. Mas, gostava ainda mais de conhecer novas praias, novos povos, novas culturas.

Certa manhã, essa velejadora chegou a uma ilha. Era uma ilha bastante bonita e a população a acolheu sorridente.

Ela logo sentiu que as pessoas tinham o coração bondoso, eram dotadas de fé e boa intenção. Inicialmente, sentiu-se muito feliz com a acolhida calorosa. No entanto, passado alguns dias, começou a sentir que algo estava errado. A velejadora sentia no fundo do coração dela uma pontinha de angústia. Não sabia dizer do que era. Aquele povo era muito bom, e estavam sempre empenhados em mostrar-lhe as paisagens mais bonitas da ilha, os espetáculos mais coloridos e vibrantes, liam textos profundos e tocantes, ofereciam frutas doces e suculentas.

Mas, apesar das distrações constantes, a angústia ainda estava lá, presente, insistente em seu coração. Impedindo que ela desfrutasse plenamente de tudo o que os ilhéus ofereciam.

E por mais que seus olhos vissem a beleza do brilho e da cor do que lhe mostravam, ela estava sempre atenta a qualquer dica que apontasse a causa de sua angústia.

Certo dia, meditando silenciosa ouviu um barulho, e conseguiu ver de relance alguém sendo carregado desacordado. A cena foi tão inusitada e rápida que a velejadora não teve reação no momento. Procurou alguns ilhéus e explicou o que havia visto. "Não se preocupe, tudo está em ordem. Olhe, veja aquele pássaro, que lindo, os antigos diziam que suas asas vermelhas indicam que o céu abençoa nosso o amor do nosso povo", respondeu um.

Mas, aquilo a preocupou, e a asa vermelha do pássaro, outrora tão digna de sua admiração, agora não atraia sua atenção, apenas seu olhar vago. Enquanto sua cabeça buscava a verdade.

Perguntou a outros que lhe disseram. "Foi apenas um desmaio, as pessoas que passam por isso são tratadas." Outros se mostravam incomodados com a pergunta "Deixe disso, não há nada". Outros não acreditaram. Outros diziam que algumas pessoas precisam de tratamento especial, pois só assim todos podem ser felizes, é a vontade dos céus, o sacrifício de uns garantem a felicidade de todos, ponto final, pois perguntas e especulações chateiam os deuses.

Nenhuma das respostas a satisfazia, e sua angústia aumentava. Os espetáculos perderam o interesse e toda generosidade dos ilhéus pareciam sem propósito, incômodas até, por a desviarem da resolução do conflito em que se encontrava. Pensativa, passou a caminhar sozinha por lugares isolados. Foi quando encontrou um ilhéu diferente. Ele estava sozinho e não usava penas coloridas e pedras brilhantes em suas roupas.

Ela não hesitou, e mesmo sem conhecer esse senhor de barbas brancas perguntou "Porque me sinto tão angustiada?" Como se esperasse por aquela pergunta, o maltrapilho lhe deu as costas e disse "Me acompanhe."

Seguiram por uma trilha fechada. Depararam-se com uma montanha, o senhor removeu umas folhagens e revelou uma passagem escondida para uma caverna. Entraram silenciosos. A velejadora sentia seu coração sendo cada vez mais oprimido, sem saber porque. Não estava curiosa, estava triste, cada passo que davam para dentro daquela caverna úmida e sombria, sentia seu coração mais e mais angustiado, desesperado como se as paredes daquela caverna sofressem e pedissem ajuda.

A escuridão era tal que não podiam ver nada. Sentiu em certo instante o braço do senhor impedindo sua caminhada. Parou e passou a ouvir uns gemidinhos baixo. Sentiu que vinham de um lugar mais amplo.

Num dado momento chegou uma luz. Aos poucos foi definindo em seu campo visual que a trilha em que estavam havia chego na parede de um amplo salão, na entranha daquela montanha.

Aproximou-se da beirada de modo a ver sem ser vista. Viu inúmeras pessoas nuas e sujas, a luz vinha de uma tocha carregada por um ilhéu, outros traziam baldes com frutas velhas e iam despejando entre a multidão de famintos, que se agachavam para comer as frutas, mecanicamente, sem brigas nem interação alguma. Um ilhéu identificou um cadáver no chão, o colocou friamente sobre um carrinho. Depois de todos os baldes esvaziados e todos os cadáveres recolhidos, afastaram-se, tão silenciosos quanto haviam entrado.

Retornando a absoluta escuridão e tristes ruídos. Sentiu que o velho passou a seguir a trilha para saída da caverna. A velejadora, chocada com o que havia assistido, seguiu trôpega e confusa.

A saída da caverna foi dolorosa, a luz cegava seus olhos, seu coração batia forte. Entregou-se a um choro compulsivo. Arfava sem ar, gritava de dor e lágrimas vertiam de seus olhos como rios. O velho a observava, inundado numa paz indecifrável. Passado esse momento de maior desespero, o senhor os conduziu à beira de um rio de águas muito cristalinas. Onde a velejadora lavou suas lágrimas e tomou um pouco de água.

"Quem são?"

"Os indesejados. Pessoas que apresentam alguma característica física não aceita. Pelos muito escuros, barbas grossas, olhos claros. Ou que tenham hábitos desagradáveis, não queiram trabalhar, não gostem da roda da fogueira, ou questionem os deuses."

"Todos concordam com esse tratamento?"

"Não divulgado claramente. Muitos ignoram totalmente, absortos por completo nas distrações que a ilha oferece. Outros não suportam pensar no que se passa, e embora desconfiem que haja algo injusto preferem não pesquisar muito afundo, tentando convencer-se de que tudo está ótimo. Outros temem ser capturados, e por mais que tenham alguma compreensão do que acontece e julguem injusto não sabem como impedir. O mais triste é que a maioria acredita que essa seja a vontade dos céus, e que se os indesejados forem expostos ao Sol, esse ficará tão horrorizado que jamais voltará a brilhar novamente, e todos perecerão de fome e frio."

A velejadora ficou a pensar. Ela sabia que o Sol não se incomodava com pessoas de pelos negros. Pois já havia visitado muitas praias e visto que as pessoas de olhos azuis ou pelos se expunham ao Sol e que este voltava a brilhar no dia seguinte, independente de qualquer coisa! Pensar no sofrimento daquelas pessoas a incomodava. Sofriam a toa, por uma crença infundada.

Passou a reparar nos gestos e fala dos ilhéus e desconfiou que havia entre a maioria deles um medo constante, um desconforto, um sentimento de culpa, que era dissimulada. Ignoravam as verdadeiras causas dos que desapareciam, e por isso temiam. Sem questionar, pois os que questionavam sumiam. Alguns rumores diziam que eram duramente castigados pelos céus. Assim, não sabiam se temiam aos castigos, ou aos céus, apoiando os castigos.

Muito atenta a velejadora ficou, analisando a todos, simulando o mesmo contentamento que via nos rostos aflitos. Até que reparou em uma ilhéu, que escondida esfregava um maço de ervas em sua perna. Essa ilhéu era uma amiga sua. Tentou aproximar-se de modo a não assustá-la. Foi em vão. Passado o susto e tendo sido as ervas jogadas longe, a velejadora questionou:

"Porque faz isso?"

"Acho que meus pelos são muito negros. Minha mãe sempre me disse para esfregar essas ervas neles toda semana para clareá-los."

"Você sabe o que acontece com quem exibe pelos negros?"

A moça negou com a cabeça, e a velejadora sentindo que podia confiar totalmente na moça e que ela compreenderia, contou tudo o que havia visto e sentido. E explicou sobre as outras praias, onde pessoas com espessos pelos negros se bronzeiam sob o Sol brilhante.

A moça não chorou desesperadamente. Ela lembrou-se de sua mãe que havia sumido, cerrou os dentes com raiva e falou:

"Isso tem que acabar".

Então, bolaram um plano. A moça deixaria seus pelos negros crescerem escondidos e no dia do evento da "graça aos céus e ao Sol" iria subir ao palco principal e mostrar a todos que seus pelos haviam sido expostos ao Sol e no entanto, este continuava a agraciá-los com seu brilho. Sem deixar a menor dúvida de que não havia necessidade de temer ao Sol e que todos poderiam desfrutar juntos e livres.

Assim, o plano seguiu. Embora a moça tenha sentido muito medo de ser descoberta, deixou seus pelos crescerem, disfarçados por roupas compridas. Inscreveu uma apresentação especial para o dia, uma declamação, que foi aceita pela comissão organizadora, e seria exposta ao meio dia.

No dia de "graça ao céus e ao Sol" toda comunidade festejava contente, cantando seus hinos, e louvando aos céus e ao Sol. Diversos espetáculos se faziam presente.

Ao meio dia, todos voltaram sua atenção ao palco principal, pois a moça e a velejadora fizeram uma propaganda muito boa sobre essa declamação, deixando todos curiosos.

A moça começou sua declamação:

"Ao longo desses anos, temos tido muita graça proporcionada pelos céus e pelo Sol. Acreditamos que somos felizes pois nos empenhamos em manter a ordem. E que o Sol jamais brilharia sobre nós se permitíssemos que pessoas diferentes de nós tivessem os mesmos privilégios e direitos."

O silêncio era dominante, todos olhavam assustados, pois em verdade, os ilhéus não sabiam exatamente como funcionava o Sol e o que exatamente separava os desejáveis dos indesejáveis. Eles tinham medo de falar e pensar sobre isso. E começaram a se perguntar se a moça estava fazendo algo bom ou ruim. Esse assunto nunca havia sido tratado de forma aberta.

"Pois em verdade eu vos digo, meus pelos espessos e negros estão a semanas expostos ao Sol, e ele brilha inalterável sobre mim, nesse momento."

Dizendo isso a moça tirou a fantasia de penas e brilhantes que escondia seus pelos e mostrou para toda a gente ver que o Sol não se incomodava com pelos negros.

O pânico se espalhou. Alguns gritavam, outros aplaudiam, outros desmaiavam, ninguém conseguia entender muito bem o que se passava.

Os mesmos ilhéus que entraram no calabouço, agarraram a moça e a retiraram do palco. Essa seguia gritando, tentando se libertar:

"Todos podem viver no Sol, não há distinção, o Sol não quer que ninguém mais sofra, libertem-se do medo. Amem-se, pessoas sofrem e morrem por causa do nosso temor ao Sol. Libertem-se!!!"

A velejadora gritava entre a população:

"É verdade! Eu visitei muitos lugares e o Sol brilha em todos eles, sobre as mais diversas pessoas. Existe nessa ilha um calabouço onde pessoas vivem em condições degradantes por causa que vocês tem medo de perderem o Sol. Mas, isso é uma ilusão. O Sol brilha. E brilha melhor ainda quando não há medo, nem opressão".

A velejadora também foi levada sob o olhar incrédulo de todos.

Elas foram levadas ao conselho diretor da ilha. Em um local secreto, mostraram a elas uma grande pedra pendurada e disseram:

“Vocês estão condenadas por terem desobedecido a Lei de Blasfêmia. A pena é ter a cabeça esmagada por essa rocha. Mas, como é muito dificultoso pendurar a rocha novamente, deixamos que vocês partam no veleiro desde que assinem esse termo de conduta, alegando que jamais voltaram na ilha o em sua área naval estabelecida pelo Decreto de Área Naval”

A moça e velejadora, acreditando que haviam cumprido uma missão, e que a informação havia sido passada aos ilhéus que haveria de reivindicar a soltura dos “indesejáveis”, assinaram o papel e partiram em busca de ares mais justos.

O povo ficou em sua maioria muito chocado, e consideraram um terrível e absurdo desrespeito o que a moça e a velejadora armaram. Consideraram uma afronta aos céus e um verdadeiro desrespeito à crença deles. Todos concordaram que não eram necessárias atitudes tão extremas assim. Alguns achavam que a o moça e a velejadora deveriam ter sido queimadas.

Outros, ainda que poucos, começaram a pensar em tudo o que foi dito. Espera-se que algum dia, a quantidade de questionadores e pensadores aumente, formando uma massa crítica, capaz de mudar as crenças e valores da ilha. E que o calabouço da montanha deixe de existir, as pessoas sejam libertadas e possam pensar e ser como bem entenderem e que ninguém mais tenha medo de viver sem o Sol, mas possam desfrutá-lo de maneira plena.
 
LUCIANO TEIXEIRA CÁCERES “O livro”.

O Livro

Era madrugada e ele estava em seu quarto, quieto, lendo um livro que já tinha lido há muito tempo, mas que resolvera ler novamente. Estava a fim de ler alguma coisa e olhou pra sua prateleira cheia de livros lidos e alguns poucos ainda não passados por seus olhos. Mesmo assim decidira-se por um repetido, a história de um assassinato mal resolvido que dava várias reviravoltas e tinha um final surpreendente. Não seria tão surpreendente dessa vez, mas ele achou que valia a pena. Não queria ler em sua cama, achava que cama era lugar para dormir ou para não pensar em nada, nunca ler um livro ou fazer outra coisa. Então resolveu ler sentado no chão, encostado na parede que estava um pouco fria para suas costas quentes, o que foi resolvido rapidamente com um travesseiro entre o que estava quente e o que estava frio. Ficou até mais confortável. O frio e a dureza do chão não eram um incômodo, mas dificilmente conseguiria ficar assim por muito tempo. Então pegou o cobertor e colocou-o dobrado no chão e sentou-se em cima. Pronto, agora sim podia ler em paz. Tinha lido uma meia-hora quando ouviu alguma coisa do lado de fora de seu quarto, o que era bem estranho, visto que morava sozinho em uma casa com três peças somente. Seria algum animal nojento e peçonhento que teria sido atraído pela louça suja que ele deixara na pia? A preguiça cobra seu preço, pensou. O barulho parou e ele decidiu continuar sua releitura. Apesar dos anos, o texto ainda mantinha-se fresco em sua memória, o que foi uma surpresa.
Sempre fora um voraz leitor. Quando novo, lia o que vinha pela frente, sem selecionar muito. Gibis, revistas, jornais, folhetos publicitários. Tendo letra colada uma na outra já era o bastante. Depois começou a escolher o que lia, porém a avidez continuava. Ficou encantado com romances policiais, até Agatha Christie deixar de ser um mistério para ele. Pulou então para ficções científicas. E Asimov e F.P. Dick ficaram plausíveis demais. Terror e suspense foram seus próximos alvos. Mas Poe e Lovecraft não o assustaram por muito tempo. As distopias de Orwell e Huxley não tiraram seu otimismo quanto ao futuro. Logo contos, crônicas, poesias, poemas não o satisfaziam mais. Tinha uma fome por leitura e ela não estava sendo devidamente saciada. Não se interessava por não-ficção. Biografias, História, reportagens nada disso o interessava. Gostava do que não existia, do que não era real, pois a realidade, para ele, não valia a pena ser aproveitada.
Não que sua vida fosse ruim, tinha uma família comum, sem extravagâncias ou problemas graves. Os que todas as famílias medianas têm. Conflito entre irmãos, discussão entre os pais sobre tal assunto, fim de semana juntos em casa ou viajando, cachorro, gato, papagaio. Sua vida era comum demais e a literatura o tirava dessa rotina, dessa vida sem excentricidades.
Então, para suprir essa necessidade, comprava qualquer livro que achasse que poderia saciar a sua fome. Um dia, em um sebo, viu um livro com uma capa vermelha, com o título e o nome do autor já gastos. Uma capa dura, de um vermelho sangue um tanto coagulado pelo tempo. Estava jogado em meio a um monte de outros livros velhos. Só o chamou a atenção porque estava equilibrado de uma forma que poderia cair a qualquer momento. Pegou o livro. Abriu-o para ler o título, mas estava faltando as páginas iniciais. A história só começava no segundo capítulo. Leu algumas linhas com dificuldade, pois as letras estavam um pouco apagadas e as páginas, finas. Mesmo assim, decidiu comprá-lo. Mais por tédio do que pelo interesse que a curta leitura lhe causou. De qualquer modo, saiu barato o suficiente para não se arrepender de ter comprado aquele livro velho sem título e sem começo. Ao chegar em casa, após comer alguma coisa, sentou-se e pegou o livro para começar a ler. Logo nas primeiras páginas do segundo capítulo, achou que tinha desperdiçado seu dinheiro em algo muito ruim. Porém, a medida que continuava, sentia uma compulsão por seguir adiante, sem parar. Apesar das páginas desgastadas, leu os cinco primeiros capítulos rapidamente, até que finalmente conseguira tirar os olhos daquelas palavras encantadoras. O mais estranho é que continuava a achar a história ruim, mas era como se precisasse ler até o final. Aquilo o fez sentir-se estranho, pois nunca sentira essa compulsão antes. Não obstante, gostou do que sentiu e decidiu voltar a ler. Leu mais alguns capítulos e, sentindo sono, foi dormir. Dormira muito bem dessa vez, algo um tanto raro nos últimos dias. Não sabia dizer porquê, já que sua rotina não tinha se alterado em nada nem havia preocupações em excesso para lhe tirar o sono.
Acordara com fome, muita fome. Levantou-se, fez sua higiene, correu para a cozinha e preparou rapidamente três sanduíches enquanto o café era passado. Assim como fez, comeu, e logo estava ele sentado no sofá, lendo o velho livro sem título. Não teve muita dificuldade em conseguir ler dessa vez, já que as letras estavam um pouco menos gastas neste trecho e as páginas não estavam quase transparentes, como no início. Pelo visto, o tempo ainda não tinha agido completamente sobre o livro e acreditou que o seu miolo estaria completamente intacto, seguindo a lógica até agora. Imaginou se conseguiria ler o final, mas não quis olhar as ultimas folhas, já que odiava saber o fim das histórias antecipadamente. Apesar da melhor qualidade do material, já não lia com tanta velocidade, a história parecia estar ficando mais densa, pesada; era necessária uma maior concentração e ele gostava de desafios.
Ainda estava achando que era baixa literatura e não entendia mais essa curiosidade que o compelia a continuar lendo para saber o que vinha a seguir. Era como se precisasse saber, como se sua mente necessitasse daquela leitura para ficar tranquila. Após duas horas, não aguentou mais e parou, cansado. Como o livro o cansava, pensou. Isso nunca acontecera antes. Estava acostumado a ler um livro inteiro em um dia, ou uma noite. Lia, quando podia, cerca de oito horas por dia e só não lia mais porque a realidade sempre o chamava por algum motivo. Trabalho, comida, limpeza, amigos(muito raros), família, que reclamava que sempre lia demais e que os deixava de lado por causa dos malditos livros. Principalmente seu pai, que mesmo sendo um leitor também, não aceitava o fato do filho ter como único desejo, ler. Até mesmo seu trabalho como ajudante na biblioteca era por vezes prejudicado pela sua avidez. Por sorte tinha uma chefe compreensível.
Mas era feriadão e não tinha que se preocupar com essas coisas. Após um breve descanso, voltou ao seu novo desafio. Leu deitado dessa vez, já que estava um pouco preguiçoso e preferiu ficar mais à vontade. Estava certo quanto ao meio do livro, estava bem melhor conservado do que o início e agora via muito claramente as letras negras e bem impressas numa página grossa e alva. Nem amarelada nas pontas estavam. Recomeçou a leitura daquele estranho texto, que já não lhe parecia tão ruim assim. A medida que lia, sua opinião mudou de vez quando chegou exatamente na metade do livro. Já achava uma estória incrível e fascinante. Não queria mais largar e, mesmo sentindo-se cansado, resolveu continuar a leitura. Iria chegar ao fim desse livro. Não parou mesmo quando seus olhos estavam ardendo devido ao esforço. Seus braços pareciam mais pesados que o corpo e o livro mais pesado que os braços. Sentia-se cada vez mais cansado e fraco, mas não conseguia mais parar de ler e nem queria. Sua teoria de que as páginas finais do livro estariam gastas foi por terra quando viu que elas estavam até melhor que as do meio. Foi quando percebeu que as páginas iniciais também estavam assim e não entendeu quando viu que aquelas letras, antes apagadas, agora estavam como novas. Ficou surpreso, mas não a ponto de largar a leitura. Não interessava mais o estado do livro, ou o seu. Somente chegar ao fim e descobrir o que acontecia no final dessa estória, que já era por ele considerada como a melhor de todos os tempos. Finalmente um livro que o completava, que o fazia esquecer a realidade chata e comum.
Não se importava mais com o seu estado cada vez pior, estava ficando mais fraco, mais magro, mais cansado. Era como se o livro estivesse sugando toda a sua força, sua saúde, sua vida. E a medida que lia, o livro ia ficando cada vez mais renovado, mais viçoso. Estava nas últimas linhas e lia com uma dificuldade imensa. Já não o segurava mais, estava deitado sobre o livro, com a cabeça erguida o suficiente somente para conseguir ler as palavras. Quase não enxergando mais, leu finalmente as últimas palavras e, juntando suas últimas forças, fechou o livro, agora totalmente renovado, de um vermelho-sangue recém liberto das veias. E, no seu último olhar, percebeu o título, agora totalmente legível em letras negras: “O Vampiro”, então sorriu e morreu.

  


Crônicas
1º lugar: SABRINA DA SILVA DE OLIVEIRA, por “As quatro estações”.


Epilogo
Existem dias que nos lembramos de todas as coisas, assim de modo singelo, é como se pertencêssemos ao mundo de alguma maneira a deixá-lo nos penetrar o intimo da memória. Algumas outras vezes também nos lembramos de coisas que não precisam ser lembradas, pois ainda continuam a acontecer, e por vezes somos obrigados a pensar em momentos que não nos fazem bem.
Quando eu vejo a neve caindo, aqui da janela do meu quarto, sinto que o tempo me ensinou muitas coisas. Aprendi por exemplo que se eu tentar acender uma lâmpada queimada ela não funcionará, o que me ajuda a não ficar com raiva da não existência da luz. Sei que não se pode dar dois passos ao mesmo tempo e me impede de querer que as coisas venham até mim antes do tempo. Entre outras coisas mais, que aprendi ao longo da vida, aprendi com você que nunca poderia lhe esquecer. Não se assuste com tais palavras, você mesmo com suas teorias me ensinou a ser assim.

Primavera

Lembro-me da primeira vez que nos encontramos, era primavera, as flores diversas exalavam seu perfume no ar, os ipês estavam mais amarelos do que nunca. O céu azul lindo, coberto por muitas imagens de nuvens a dizer como é bom sonhar. Eu havia saído para minha corrida matinal. Mais tudo estava tão belo que eu me deitei sobre a grama. Algumas formigas se comunicavam perto dali, mais longe o suficiente para que não me incomodassem, você chegou, fazendo sombra a meu sol, estava a alongar. Eu levantei vagarosamente. Encarei-o. Você sorriu. Não precisou dizer-me nada, aprendi enfim que existia amor à primeira vista. Despistei e segui-te. Corria tanto que quase não podia alcançá-lo, por fim manteve o trotear. Já havíamos corrido o bastante quando me cansei, parei apoiando os braços sobre as pernas. Você olhou para trás, dizendo:
- Acho que precisa treinar um pouco mais guria.
- É eu sei sempre me distraio quando vou correr. Então não atinjo objetivos.
- Entendo, no entanto temos que focar nossas idéias, nossa direção, se não conseguirmos fazer isto para algo que nos beneficiaria unicamente, não faremos nada pelo próximo.
Então você sorriu mais uma vez e se foi. Passei a correr ali todos os dias nos mesmo horário. Não voltei a vê-lo. Modifiquei os turnos, passei a ficar sentada no mesmo banco e nada, não ti vi mais. Foi então que desisti.

Verão

Eu estava na sacada do quarto, observava o movimento na rua, carros iam e vinham frenéticos, aturdidos. Ir e vir, chegar e partir, nascer e morrer era o que tudo parecia indicar nosso fim, nosso dilema era concebido por imagens tão estranhas de nós mesmos, que passávamos batido ao verdadeiro sentido de viver, que eu mesma ainda não sei qual é.
O verão chegou, era tudo tão quente, pessoas indo para lá e para cá, suadas, sujas. Meu ar condicionado fazia um barulho insuportável a noite, e eu não podia dormir. Durante o dia tinha que enfrentar todos aqueles senhores de ternos, julgamentos, leituras e discernimento. Já não suportava tanta melancolia. Era do trabalho para casa de casa para o trabalho. Argentina passou a ser meu pior pesadelo, e se isto não bastasse ainda tinha lhe guardado na memória. Isto era o que mais me incomodava, era como se primavera quisesse dizer você. Tinha raiva por ter aparecido na melhor estação do ano, a minha predileta, só podia ser por isto que não me saía da memória.
Foram longos meses, de dor e solidão. Sofria a falta do desconhecido, como pode algo nos tornar assim? Pensei. Quando a natureza já anunciava a chegada do outono minha mente passou a ser obsessiva em te esquecer, mais quanto mais eu queria, aquilo se tornava impossível. Cheguei a ir ao psicólogo e não adiantou. Foi o pior verão de todos.

Outono

Folhas em todas as partes, a doce sensação de que tudo se vai, de que as coisas findam, de que nada é duradouro o bastante para ser eterno. Contemplando uma grande rua, ornada pro grandes arvores de galhos secos e limpos, eu estava. A pisar sobre folhas de tom laranja, que faziam barulhos quebrando-se, me dizendo que eu o havia esquecido que aquilo havia passado, o outono havia chegado.
Sentada debaixo de um grande carvalho, observava as pequenas montanhas que ainda guardavam o inverno sublimes. Pensei que eram frias, sem vida. Mais lembrei-me dos animais e de tudo o quanto precisava daquilo para sobreviverem, lembrei-me de um documentário que vi uma vez, a “marcha dos pingüins”, como seres tão inferiores, conseguem ser tão mais “humanos” que nós? Isto não importava, tornei a observar a rua, pessoas passavam. Algumas sós, outras acompanhadas por pessoas, animais. Um cachorro amarelo, grande, bonito e babão, veio até mim. Lambeu-me a mão.
- Stock. Vem cá, deixe a moça em paz. Disse um homem, alto, cabelo liso negro, com um belo sorriso. Era você. Como aquilo era possível? Estava eu em um lugar da cidade. Longe de onde havíamos nos encontrado da outra vez. Você se aproximou, segurou o cão pela coleira, prendeu-o a corrente:
- Ora, ora quem está ai. A mocinha sem fôlego. Então você sentou ao meu lado.
- Olá.
- Olá. O que faz por estas bandas?
- Apenas caminhando.
- A sim, sabe mesmo escolher os lugares de acordo com as estações não é mesmo?
- Enfim devo ter aprendido alguma coisa.
- João Vitor. Prazer.
- Suelem.
Não se você lembra mais nos olhamos, por um longo tempo. E isto dizia tanto.
- Tua mãe não ralha contigo por ficar perdida por ai?
- Quantos anos acha que tenho vovô?
- Quinze?
- Ora, tenho vinte e três.
- Sim, claro. Grande diferença.
- E o senhor vovô quantos ano tem?
- Bem mais que você.
- Não creio.
- É que sou conservadinho.
- Sei, vamos diga, não brinque.
- Trinta anos. Satisfeita?
- Com seus trinta anos? Acho que você quem deveria estar. Sorriram os dois.
- Então Suelem estou indo, já está na minha hora.
- Mais você nem me disse quando nos encontraremos novamente.
- Por ai garota, por ai. Então você se foi mais uma vez. Eu queria ter lhe impedido, mais não fui capaz, tive medo, não sabia o que dizer. E a tormenta recomeçou.

Inverno

Eu já sabia que não podia te esquecer, porém também sabia que não podia lhe ter. Nunca havia lhe dito nada a respeito, nem sequer sei se você pensou nisto, no entanto, eu sabia dentro de mim, que alguma coisa nos separava. Era algo grande e impossível de destruir. Aquilo era inquietante, turbulento e assustador. Eu me levantava todos os dias e observava a rua da janela do meu quarto. A neve caía como ao som de valsa, o vento fazia contatos com as arvores, balançando-as em diversos sentidos. Parecia querer-lhes arrancar. Eu resolvi abrir a janela para ver se tudo o quanto eu estava sentindo também fosse com ela. O vento estava gelado e penetrava fortemente sobre o quarto. Eu sentei sobre a janela, e senti todo o rock in rol que a natureza expressava talvez os melhores tivessem tido sua inspiração nisto.
Foi ali que permaneci mesmo com o frio, a noite toda. O dia amanheceu a rua estava toda tomada pela neve, um carro branco era confundido, todas as árvores estavam lisas e cheias de gelo. Eu resolvi descer e andar. E foi o que eu fiz.
Quando cheguei à rua, todos a neve ainda descia do céu, agora em compassos de samba, um lento toque, sereno. Duas pessoas viam caminhando, falavam alto aos risos. Eu as olhei. E lá estava você, perseguindo-me de novo. Tu me viste, encarou-me profundo nos olhos, abaixou a cabeça, a moça que estava contigo entendeu algo, que só ela saberia explicar e também baixou o olhar. Eu os observei até dobrarem a esquina, e sabe de uma coisa meu caro, aprendi que tem coisas que temos que desaprender, eu não vou mais gostar de você.

Final

Foi um ano de ti, e hoje escrevo-te mesmo para que não leia, mais prometo a mim mesma, será a última vez que me recordo de ti, meu impetuoso amor desconhecido.
 


2º lugar: ANDRÉ LIMA BARROS, por “Adolf de tal”.



ADOLF DE TAL

O que mais me assusta na história de Hitler é saber que ele foi um ser humano de carne e ossos como eu, como você, como todos da nossa raça são. Ele não veio de outro planeta, não foi criado num laboratório e nem era um monstro alienígena do tipo “filme-de-ficção-científica”. Ele nasceu de uma mulher que exerceu de fato e de direito o papel de sua mãe. Ela o cuidou, o amamentou, o amou e, até onde conta a história, lhe deu carinho. Ele também teve um pai, na verdadeira uma família inteira, e ele foi, sim, um bebê fofinho e mimoso, inocente e sem maldade nenhuma, como eu, como você e como todos da nossa ração também já foram.  Isso é absolutamente apavorante!

Outra questão que me incomoda é que ele nunca agiu sozinho - ele não era, nem de longe, um exército de um homem só. Sempre teve aliados e nem todas aquelas idéias terríveis saíram somente daquela cabeça perturbada e doentia. Ele era seguido, amado, idolatrado, aconselhado e, infelizmente, obedecido por muitos, mais muitos mesmo e, além disso (pasmem) ainda hoje alguns erguem criminosamente aquela  horripilante bandeira  nazista.

Todavia, o maior e o mais desagradável desconforto que sinto em relação a esse assunto provém da minha crença religiosa. Eu acredito que Hitler é meu irmão. Defendo que ele é filho do mesmo Pai Celestial que eu creio ter. Ele veio para essa terra do mesmo lugar de onde eu estava, pela mesma razão que eu vim, para alcançar o mesmo objetivo pelo qual estou (ou deveria estar) lutando. E, caso você seja ateu, do ponto de vista científico, biológico, matemático ou histórico, Hitler também é, de alguma forma, seu parente, seu irmão. Em algum lugar da sua árvore genealógica, querendo ou não, o nome Adolf Hitler vai aparecer (e o meu também), acredite.

“Não pode ser”, você deve estar pensando. “Será mesmo?” E eu entendo a sua reação, afinal, estamos falando de um monstro, de um assassino, de um sanguinário, de um inegável xenofóbico preconceituoso, obtuso e cruel que ... mas, só um instante, o que aconteceu com aquele bebê fofinho e mimoso, inocente e sem maldade nenhuma? Bem, a minha teoria é que em algum ponto de sua vida, por alguma razão que desconheço, ele achou que ela, a sua vida, valia mais do que a vida dos outros.  Por exemplo, quando ele suspeitou que sua comida poderia estar sendo envenenada por algum dos seus tantos inimigos, ele logo tratou de providenciar quinze jovens alemãs que provariam tudo que ele fosse consumir antes de ser a ele servido. Se alguma daquelas jovens tivesse sido de fato envenenada (o que nunca aconteceu), e tivesse agonizado, vomitado as tripas, esvaecido de sangue pela boca, ânus, olhos e nariz, sentido lenta e torturantemente o seu esôfago e glândulas incharem e seu corpo queimar como se um líquido ácido desintegrassem suas veias e órgãos internos, até que a benção da morte lhe fosse finalmente concedida, tudo bem, era somente uma jovem alemã caipira e desconhecida sem relevância nenhuma. No entanto, ele não poderia passar por essa experiência. Ele tinha de ser preservado, poupado, cuidado como uma jóia rara, pois, para ele e para todos os seus aliados e seguidores, a vida de Adolf Hitler era muito valiosa e importante, muito mais do que a vida daquelas jovens meninas, alias, do que a de qualquer um no planeta.

Monstruoso, não é? E é isso que me assusta. Essa monstruosidade toda pode também estar dentro de mim! E, na verdade, respeitando as devidas proporções, está. Quantas vezes eu considero os meus problemas mais graves e importantes do que os dos outros? A minha dor sempre é mais doida, pior e mais forte. A minha pressa é sempre mais legítima, mais justificável, tanto que eu posso ultrapassar indevidamente o carro daquela “velhinha amarrada” ou cruzar o sinal vermelho somente uma vez, somente hoje. A minha urgência é sempre mais urgente do que urgência alheia. Entre mim e seja lá quem for (salvo aquelas cinco pessoas pelas quais eu até morreria) ... eu sempre venho na frente, sempre tenho razão, eu é que mereço, eu é que devo ser poupado, eu  ... eu ... eu.

Felizmente, nós, eu e caríssimo leitor, não temos o poder de Hitler. Ninguém nos segue, ninguém nos obedece sem questionamentos e, supostamente, não temos a intenção de dominar o mundo inteiro, deixando sobre ele apenas as raças que consideramos puras. Mas, apenas hipoteticamente falando, se tivéssemos aquela mesma autoridade, aquele mesmo poder, aquela mesma posição política e social, o que faríamos? Como agiríamos? Quem seríamos? Alguém iria provar a nossa comida antes de desfrutarmos das nossas refeições? Se sim, quem seriam as quinze meninas alemãs caipiras e desconhecidas que iríamos escolher?

 Que medo de Hitler! Que medo da raça humana! Que medo de mim!!



3º lugar: LEANDRO BARENHO OTTESEN, por “Gente estranha”.


            Gente estranha

            Estava olhando pela janela do ônibus e uma senhora de idade subiu. Vinha com sacolas e uma bolsa de couro. Um garoto levantou e insistiu para que ela aceitasse o lugar.
            Começou a entrar mais gente do que sair e o ônibus lotou. Pedidos de licença, com licença e desculpe iam atravessando a multidão, seguidos de obrigadas. A bela moça de blusa azul marinho desceu. Eu a acompanhei.
            A senhora com as sacolas também desceu, mas pela porta dianteira. Havia um mendigo na calçada, jornais e uma placa que pedia esmolas. – Bom dia, Serginho. – disse a idosa, enquanto tirava um saco marrom do meio das sacolas plásticas de supermercado. – Bom dia, dona Isabel. – respondeu o indigente. Eu me encostei à parede do prédio e acendi um cigarro. O homem barbudo agradeceu pelos pães e ofereceu um gole de uma garrafa duvidosa à senhora. – Ah, não, meu filho. Eu não bebo. Obrigada e fique com Deus.
            Um cachorro vira-latas veio em minha direção e o moço assobiou. O animal sentou à sua frente e ganhou metade de um dos pães. Em duas mordidas, o manjar tinha acabado. Levantou-se e seguiu seu caminho de cão-de-rua. E eu segui o meu.
            Uma garçonete saiu do restaurante à minha frente e me pediu o isqueiro. Comentou algo sobre o tempo, mas eu não prestei atenção. Notei a barriga protuberante e o brilho da sua pele. Um homem distinto em um paletó cinza saiu pela porta e entregou uma nota amarela. Enquanto eu dobrava a esquina, ouvi – você não estava lá dentro, então, aqui está a gorjeta.
            Cheguei à porta do meu prédio e vi um panfleto colado na parede “Encontrado cão da raça York Shire. Dono favor entrar em contato pelo fone abaixo.”
            Na porta do meu apartamento, o síndico estava prostrado com um jornal às mãos. – Circulei alguns empregos que possam te interessar e o meu primo tá precisando de um motorista. Anotei o número dele aqui. – disse, entregando-me o jornal. – E também esquece os três atrasados. Paga esse mês que ficamos quites. Boa tarde.
            Entrei em casa, servi um copo de uísque barato e liguei a televisão. A guerra ainda continuava. – É pra pacificar o país! – diziam. – Pra roubar o petróleo! – diziam. Troquei de canal. Um homem é preso por assassinar a filha grávida e o namorado... Um homem-bomba mata vinte e duas pessoas em um parque. Desliguei a televisão.
            Comecei a lembrar de tudo que vi durante o dia. De todas as pessoas com quem encontrei. Que gente estranha!
 



Poemas
1º lugar: MANUELA ALMEIDA DA SILVA SANTO, por “Poema das palavras caladas”.

Poema das palavras caladas
Diz-me, então, palavras essas
que emergem do sentido oculto
escondido entre os lábios de uma boca
que não fala
entre os lóbulos de um ouvido
que não (h)ouve

diz-me e cala-te
só assim saberei do que falas.
 

2º lugar: EDUARDO PORTO TEIXEIRA, por “Amor conjugado”.

Amor Conjugado

Eu amara, tu amavas..
Pra mim era mais que perfeito,
pra ti pretérito imperfeito
Se o teu tempo era diferente do meu
no infinitivo a gente iria compor

Mas a oração foi perdendo o sentido,
e o sujeito mudou sem pudor
Amar é verbo intransitivo,
escrito sem dor nem rancor

A oração não tinha sujeito
Do verbo sofrer virei professor
Querias me ter do teu jeito,
quisera eu ser teu amor

Mas ainda me perco na língua,
sem saber se é amor conjugado
Ao sentir o sabor dos teus lábios
conjugo esquecer bem errado
 

3º lugar: LILIAN DA SILVA NEY por “Poema sem saída e
LEANDRO BARENHO OTTESEN por "Minha pátria . 


Poema sem saída

Que triste a tua sina
Empoeirando-se
Amarelando-se
Neste vão da estante
As traças divertem-se
Te sorvem com gosto
Mas de que adianta
Se não sabem ler
E tuas lágrimas
Esfarelam-se
Um trilho de dor
Levadas pelo vento
Do espanador.


Minha pátria

Pátria torta, torpe e tonta
Tanta obra atrás do tempo
Tanto homem ao relento
Muito falta pra estar pronta

Pátria minha, minha e nossa
Minha nossa! Quanta morte
Quanta vida sem um norte
Muita falta faz a roça

Pátria artista, triste e tola
Qual futuro te espera?
Pois que mudes nesta era

Não te sejas tão à toa
Pátria rica, grande e linda
Linda pátria, vá à guerra
 


Menção honrosa poema:

PAULO ROBERTO OLMEDO DOS SANTOS “Manifesto”


Manifesto

Quereria eu fazer versos de amor
Mas a bomba atômica caiu sobre minha cabeça matando milhares de iguais cabeças e outras bombas continuam a cair por motivos tão importantes quanto

Quereria eu fazer versos de paz
Mas no jornal velado que vejo todo dia principiam crianças mal nutridas e ignorantes estúpidos acenando para sua própria desgraça enquanto bocas sorriem com dentes de ouro e indiferença

Quereria eu fazer versos bonitos
Mas o Romantismo é um tempo tão passado deste meu tempo que até mesmo o próprio passado já foi questionado como escritura

Quereria eu fazer rimas perfeitas
Mas Drummond ri da minha cara em livros empoeirados que ninguém lê enquanto agonizo de incapacidade e consciência

Quereria eu fazer versos de adoração
Mas se aproveitaram da minha inocência pueril para incutir ideias que hoje renego muito por falta de vontade de crer do que por acomodação de aceitar

Quereria eu fazer versos de amizade
Mas as conversas folgadas transmutaram-se em cliques e perfis a serem atualizados diariamente para que a mentira aparente ganhe força sobre a verdade disfarçada

Quereria eu fazer versos eternos
Mas o passado me impele combinado com um presente fugaz de informacionalidade estúpida que renega o saber em troca do parecer saber
  
Quereria eu gostar de poesia
Mas me enojo e regurgito por tantos pseudos substantivos que nunca souberam do que se trata e pensam, talvez ingenuamente, que rimar dor com amor é ser poeta
 

 
FILIPI VIEIRA AMORIM “Dor da lucidez” 


DOR DA LUCIDEZ

Nada,
som estridente do eco; reflexo
barulho do espelho; vida

Tempo, luz consumida
invólucro de tudo; morte
alimento da vida; sonho

Pena de abrir os olhos,
dor da realidade; fuga
consciente devir; inconsciente

Inavegável,
mar da opressão; tirania
eco da morte; vida

Demência,
dor da lucidez; consciência
nutriente da vida; arte.

e LÚCIO CAROBIN MACHADO “Casulando”.


CASULANDO


Estou cansado de andar dum lado ao outro

Feito lagarta que quer se transformar

Quero ser borboleta, e é pra já

Não quero trabalhar, agir ou obrar


Para assim me metamorfosear,

Num casulo quero adentrar

E lá ficar

Mais de três anos a descansar


Até parece fácil falar

E praticar?

O tempo tarda a passar

Eu e você estamos a casular

Sem dúvida, um futuro melhor há de chegar!


Não tardou e o tempo nos encontrou

Olhou dentro de nossos casulos

E contou:

"o futuro melhor chegou, mas por vocês passou,

os casulos nem sequer notou.

Em borboleta, não os transformou.

Não trabalharam, agiram, obraram;

apenas casularam e no tempo ficaram".
 

 

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